Tive uma infância tranquila. Passei-a grande parte dos primeiros anos no Poço do Chão.
A vivenda dos meus padrinhos tinha a entrada e os muros que a separavam da estrada do Poço do Chão voltados para o que é hoje o Colombo. A sul, situava-se a garagem, o jardim e a horta com arvores de fruta. Uma cerca de alvenaria coroada de arame farpado fechava a propriedade a poente e tapava os labirínticos corredores de trepadeiras em jeito de alpendre que continuavam por fora a parte posterior da casa, uma divisão envidraçada disposta a todo o comprido da construção que albergava entre outras actividades domésticas a lavandaria e a engomadoria. O jardim, cuidadosamente tratado, prolongava-se por um enorme relvado que abrigava o estendal da roupa e a casota do Zip, um cão com uma cabeça preta e branca tão grande que às vezes me tapava o sol quando perscutava com os seus olhos imensos os sinais de bem estar do meu rosto. O Zip cuidava de mim com um apurado e militar sentido de missão. A começo, quando me deixavam no carrinho protegido do sol pela sombra de uma fralda. Mais tarde, quando me deixavam a gatinhar na manta que se usariam ainda, descobri-o mais tarde, nos picnics na Lagoa Azul ou noutros pontos igualmente feéricos da Serra de Sintra. Nessa altura, o Zip partilhava comigo os seus guizos e fingia que caçava coelhos para me divertir.
Deste período da minha vida, naturalmente, pouco me recordo. Estava mais interessado em perceber a lógica dos eventos sociais do que em rabiscar a estrutura do mundo físico que se organizava à minha volta. A calmaria dos dias, desbaratados a dormir, era interrompida quando os meus padrinhos Alvaro, Elen e Eric chegavam do liceu e brincavam comigo. Mais tarde, chegava, vindo do escritório num carro preto, o padrinho Harald, o pai. Chegava todos os dias à mesma hora, inspeccionava meticulosamente cada uma das rosas do jardim e dava duas bolachas ao Zip que, meia hora antes, já se havia pendurado no muro da estrada a farejar a sua chegada. Quando era mais crescido, também eu me debruçava com o Zip sobre aquela estrada em que raramente passava uma carroça. E confidenciava-lhe as estórias que, momentos antes, a Leninha me tinha contado. Ele ria-se muito com aquela língua comprida toda dependurada da boça e arfava, a intervalos, como o motor do carro do padrinho. De vez em quando, levava uma valente lambidela, limpava-me às mangas do bibe, e lá nos púnhamos de novo à coca do focinho do grande carro negro a virar a curva da estrada.