SE FIZERAM VELA E NAVEGARAM
Foram os corpos desenhos de caminhos
traçados no labor dos dias úteis
em vermelhas praias calorosas
em lívidas luas friorentas.
Aprumados cresceram entre penhascos e lonjuras
atentos sempre à inclinação das noites.
Com versos brancos na língua incendiados
acrescentaram pele a outra pele.
Depois veio o deserto e os corpos
aprenderam novas sedes
já não de águas correntes
mas de estrelas.
Do deserto ao dilúvio foi um palmo de vida
e então os corpos se fizeram casco
se fizeram vela e navegaram.
Não se perderam.
Eram eles o mapa da viagem
Licínia Quitério
Encontrei neste lindíssimo poema da Licínia as ideias chave, mas em bom estilo, daquilo que defendo neste lugar que procurarei resumir :
A metafísica remeteu o nosso ser para uma alma distante e anémica e condenou o corpo a cárcere, besta de carga, animal tarado e libidinoso. A metafísica instituiu a origem da ordem ( o monismo), o lugar dos seres e das coisas ( o céu, a terra e as ordens de seres viventes e sensientes) e distribuiu os recursos da Terra a cada um segundo os seu méritos ( a meritocracia de casta, de sangue, de raça que distingue cada um segundo a sua capacidade de saque).
Para o monoteísmo (o capitalismo do sagrado) e o capitalismo (o monoteísmo do mercado) a vida do ser humano não tem que ser fácil e uns terão que ser condenados para que outros sejam salvos. Os caminhos estão traçados de antemão, só há que ler o manual e cumprir os procedimentos.
sedes...)Ouvimos, nos dias de hoje, o estertor da metafísica agonizante. Não é uma morte certa e a curto prazo: é uma sucessão de mortes. Primeiro, a morte de deus; depois, os regicídios; agora, a morte do mercado; amanhã... dos amanhãs nada se sabe. A metafísica não morrerá, nem nos deixará em paz, se não retornarmos a uma ontologia topológica e naturalista.
de águas correntes
Isto é, enquanto não puderem todos dizer, parodiando Gassett, "eu sou o meu corpo e os meus lugares".
Foram os corpos desenhos de caminhosE acrescentar: "eu seguirei os meus caminhos". E os corpos
traçados no labor dos dias úteis
(...)
Com versos brancos na língua incendiados
acrescentaram pele a outra pele(...)
os corpos se fizeram casco
se fizeram vela e navegaram
Não se perderam.
Eram eles o mapa da viagem
Poema a reler!