No tempo em que nasci, os partos eram feitos em casa. Quando chegou a hora, o meu pai pediu a assistência dos serviços clínicos dos CTT e mandaram-lhe uma enfermeira-parteira a casa.
Apesar de ser um dia de verão intenso, enchi-me de coragem e decidi defrontar o mundo à hora mais quente do dia. A enfermeira tardava e eu não estava para grandes esperas, o que é estranho em mim que me considero, de um modo geral, paciente. Mas, caramba, só se nasce uma vez! E lá vim, assistido pelo meu pai que improvisava. Vim nédio e lustroso, dizem que pesava mais de 5 quilos, um “borrego” como se expressavam os meus velhos com orgulho. Correu tão bem o parto que descreveram a minha vinda ao mundo como tendo sido feita “de patins”. Todavia, não gritei, permaneci mudo para espanto de toda a gente. Assim fiquei e comecei a ficar roxo até que alguém se lembrou de me meter debaixo de uma torneira com água fria a correr. Não devo ter gostado nada da partida porque comecei a berrar que nem um vitelo.
Uma hora depois, mais coisa menos coisa, chegou a enfermeira que tinha tido uma panne na autoestrada na subida do parque florestal do Monsanto. Não perguntem qual era a autoestrada porque naquele tempo só havia uma: Ligava a ponte Duarte Pacheco ao estádio do Jamor, ambos inaugurados, autoestrada e estádio, havia quatro anos.
Não me lembro nada do que se passou nesses primeiros meses. Quando a minha mãe já estava em condições de voltar ao trabalho – era cozinheira em casa de uns senhores dinamarqueses que moravam no Poço do Chão – levava-me com ela. Muitas vezes ficava lá, primeiro com a minha mãe, mais tarde sem ela.
Sem me dar conta disso, parecia despertar um agrado geral nas pessoas que gravitavam à minha volta e que me solicitavam. Nunca a minha cotação esteve tão em alta. A certa altura, uma prima do padrinho Harald, uma dinamarquesa solteirona e entradota que estava em Lisboa de visita aos familiares, acho que podre de rica, quis levar-me com ela para København, que me ia fazer muito feliz e que lhes dava por mim o que eles pedissem. Os parvos dos meus pais não aceitaram. Manias daqueles tempos! Hoje as coisas estão mais liberalizadas, pelo menos no que respeita aos jogadores de futebol.
A crise passou. Por um lado, nunca fui muito de cismar nas coisas ... o que não fazia grande diferença porque também nunca era tido nem achado nas decisões dos adultos; por outro lado, as pessoas crescidas tinham mais com que se preocupar e amiúde mudavam de assunto. Isso ainda hoje me irrita, nas pessoas e nos noticiários.
Presenciava todas as conversas dos adultos, discretamente mas com muita atenção. Descobri, primeiro, que usavam os sons da boca para conversar. Faziam-no durante muito tempo, cada um de sua vez. Eu fazia como eles e verificava, muito agradado, que me davam atenção fazendo também eles muitos barulhos com a boca. Depois descobri as palavras, aprendi algumas e guardei-as ciosamente para mim. Os meus pais, alarmados, porque aos dois anos e meio ainda não falava, levaram-me a um médico que logo ali os tranquilizou garantindo-lhes que eu falar, falava, mas que era para dentro. Não sei como o médico o descobriu, mas cá para mim aquilo foi um palpite. Usei isso mais tarde como psicólogo de crianças e comprovei que quanto mais disparatado o palpite mais chances há de acertar. Eu fazia as minhas descobertas e comprovava-as cientificamente. Por exemplo, que os crescidos eram parvos: sempre que uma pessoa pequena improvisa eles respondem-nos com palermices e momices, tipo “glu-glu-glu” e “tá-tá-tá”. Que ideia fazem de nós? Melhor seria, concluí, continuar as minhas pesquisas independentemente e não confiar muito na arraia graúda.
Descobri que certas palavras só podiam ser usadas juntas e não podiam ser misturadas com outras palavras. Por outro lado, havia grupos distintos de palavras para grupos distintos de pessoas e para ocasiões distintas. O grupo com maior frequência de utilização era usado pelo pessoal e pelos senhores quando falavam com o pessoal. Entre os membros da família usavam-se palavras que só eles entendiam. Quando havia jantares com as pessoas do “escritório” e outras pessoas que me eram estranhas, e se falava de negócios, usavam um terceiro grupo de palavras desengonçadas, as da língua inglesa que ainda hoje me entedia de morte. Os meninos falavam entre si numa língua que, a acreditar na Leninha, era muito “chique”. Gostei muito dessa palavra e ainda hoje adoro o Francês. Há dias, estava a ver um filme com a Graça e ela desabafou: “mas que língua tão estranha esta!”. É dinamarquês, disse sem pensar. E era. Achei-a uma língua muito doce.
Com três e quatro anos já falava alguma coisa mas depressa voltei a falar muito pouco. A minha mãe deixou o emprego para se dedicar a mim e à casa e voltámos decididamente para o Bairro Tacha. Então, o meu pai começou a ensinar-me a ler.