Como já referi, mas não com o pormenor suficiente, o bairro abrangia o troço da estrada de Alfragide, duas ruas perpendiculares, a 1 (actualmente, Padre Cruz) e a 2 (Padre Américo), que terminavam abruptamente num morro de onde se vislumbrava a Damaia, duas ruas paralelas, a 3 (Prof. Dr. Egas Moniz) e a 4 (António Ferro), que, vindas da estrada de circunvalação no sentido da Adamaia, cruzavam as primeiras e perdiam-se nas searas entre o bairro e o pequeno casario de Alfragide, e uma pequena travessa (rua Gonçalves Zarco) que, saindo da estrada de Alfragide atalhava para a estrada de circunvalação no sentido do bairro da Boa Vista.

A construção, antes do aparecimento dos prédios “novos” nos finais dos anos 50, resumia-se a dois tipos: o mais antigo, encontrado na estrada de Alfragide e na travessa, era formado pelos chalés unifamiliares, de piso térreo e completamente rodeados por um quintal; o mais recente e o mais comum, o das quatro ruas, por prédios de quatro habitações cada, com o rés-do-chão envolvido pelo quintal.

Acedia-se à habitação pela porta da rua e pelas escadas. A porta interior dava para um corredor com cerca de oito metros que ligava a sala de jantar, que dava para a rua, com a cozinha, a dar para as traseiras. De um dos lados do corredor, um quarto interior e a dispensa, e do outro lado dois quartos e a casa de banho voltados para o quintal. Apensos à cozinha, um cubículo de arrumos com uma pia e uma pequena marquise. Ignoro se as casas eram todas assim, mas esta era a estrutura da minha casa no prédio JB da rua 3.

À frente de cada prédio, os quintais eram ajardinados ao gosto e de acordo com a imaginação e a posse dos seus possuidores. Lembro-me fugazmente das roseiras, de rosas vermelhas ou brancas, que trepavam as paredes altas que separavam os quintais, e dos jarros e das margaridas nos canteiros de tijolo, cimentados e pintados com cores vivas. Subindo por uma pequena escada cimentada ia-se dar, de cada lado do prédio, a um corredor de calçada à portuguesa colocado entre a parede do prédio e uma faixa de terreno mais larga onde havia árvores plantadas, geralmente nespereiras ou limoeiros. Nas traseiras, o passeio de calçada alargava-se para formar um pequeno pátio e o terreno alongava-se para acolher hortas com couves, alfaces e feijão de trepar, capoeiras com galináceos e coelhos, e árvores de fruto como a macieira, a pereira e o pessegueiro.

A população era sobretudo constituída por casais novos, com um ou dois filhos e um ou outro parente. Os habitantes mais instruídos tinham o quinto ano dos liceus ou um curso técnico. Ter o sétimo ano, o que era muito raro, fazia da pessoa um doutor. A larga maioria da população tinha a 4ª classe, geralmente os homens, ou era analfabeta. Predominavam os pequenos e médios funcionários dos serviços (forças armadas, polícia, bombeiros, correios, carris, CP) ou operários qualificados e semiqualificados, sendo a Sorefame na Damaia o principal empregador. As mulheres ficavam em casa como domésticas, a tratar da casa e dos filhos, e algumas eram operárias a tempo parcial ou prestavam em casa serviços de costura, de modista, de enfermagem, cabeleireiro ou outros pequenos serviços. Entre os homens, contavam-se alguns alfaiates e sapateiros.

O comércio era o suficiente para os consumos diários do bairro: Recordo-me de várias mercearias, peixarias e tabernas, duas padarias, um talho de carne de cavalo, uma carvoaria, uma capelista, uma drogaria e uma barbearia. Ninguém se servia do que precisava: esperavam todos, ordeira e pacientemente, do lado de cá do balcão, enquanto o merceeiro, o caixeiro ou o marçano, do lado de lá, aviava os clientes um a um. Ninguém se maçava com esta situação: era o momento do dia de alta convivialidade. As notícias do mundo era ali que circulavam. Era ali que se fazia os comentários sobre o quotidiano do bairro, dos nascimentos, dos baptizados, dos casamentos, das zangas entre marido e mulher (com obrigatória expressão pública à janela seguida de excursão dos vizinhos à casa da vítima), das doenças e achaques, dos funerais e dos enterros. Também ali se fazia o comentário político, o único que se podia ou sabia fazer: “o que o Salazar devia fazer era…”, por exemplo, aumentar os salários dos maridos, diminuir o custo da vida. Tudo se resumia a uma coisa bem simples, à ignorância do Salazar. O homem até tinha boa vontade mas estava rodeado de uma data de salafrários que lhe escondiam os problemas reais dos portugueses. O da loja também metia a sua colherada tentando impressionar a clientela com os seus conhecimentos. No fim, a gente ia embora e não pagava. Ia tudo para o livro dos fiados.

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