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Acordei, não com a chuva como fantasiara, mas com as árvores a pingarem. Fui lá fora a respirar o ar fresco e perfumado da manhã. Ainda estava escuro e as estrelas brilhavam clara e distintamente no céu. Alguns galos mais madrugadores cantavam. Ouvia-se os sons e os cheiros do planeta a acordar.
Voltei para dentro, o meu ritmo era diferente. Eu não tinha manhãs nem noites: Tinha-me reformado. Por isso, tinha períodos de estar a dormir e períodos de estar acordado. O quarto tinha o cheiro fedorento de um estábulo humano e agoniava-me o odor a humanidade. Ficou a porta meio aberta a dar passagem, para fora, ao ar morno e insalubre e, para dentro, ao ar revigorante da madrugada. Senti a necessidade de arrefecer o corpo e o ambiente, completamente obcecado com o mistério de me deitar enregelado à noite e acordar de madrugada afogado em calores infernais. Atribuía isso ao inferno da vida interior que me é inacessível quando acordado. Interior é uma maneira imprópria de falar, interior sou eu e tudo o resto me é exterior: seja os mistérios que estão entranhados no âmago da opaca matéria cósmica; seja os mistérios que ocorrem na maquinaria do meu cérebro. Chamar-lhes mistérios é o mesmo que chamar-lhes coisas reais ou exteriores. São o que são, eles estão lá e, se procurarmos, acharemos que têm uma razão. Só eu é que não sou real, só eu é que estou dentro de mim, só eu é que não tenho razão de ser, só eu é que não tenho mistério. Sou uma espécie de forro dos lugares em que vivo e acontece ter períodos de estar acordado e outros de estar a dormir a descansar de mim.
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Deveu-se o caso do meu acordar cedo demais, esta madrugada, ao facto do piscar intermitente da luzinha de aviso, na minha estação metereológica, de possível formação de geada. Com efeito, as três localizações dos sensores exteriores apontavam para temperaturas negativas.
Tal acordar não era ingénuo. Em vez de sonhar, como faz qualquer cidadão decente enquanto dorme, eu estava a pensar sem saber o que fazia. Uma vez acordado, eu continuava a pensar sabendo que o fazia. O estranho, o que não acontece com frequência nos sonhos, é que os meus pensamentos eram bastante estruturados e faziam sentido. Estavam como que dispostos em macinhos em cima da mesa de trabalho. Quanto mais eu acordava, eles deslocavam-se para um lado e para o outro a fim de se disporem de forma mais ordenado como fazem os soldados em ordem unida.
Não é fácil apresentar a totalidade dos detalhes da minha ideia pois precisaria de horas para os escrever a todos e de uma memória prodigiosa para retê-los durante todo esse tempo. Pese embora a falta de detalhe, vou tentar dar uma visão sumariada dela.
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É sobre os ventos da história, o destino da humanidade, a relação entre os movimentos regionais e a globalização, os vírus e as suas propagações, e outros assuntos que estão debaixo da língua e que a seu tempo virão certamente. Ou não.
Comecemos pelos movimentos regionais. Para explicar o que entendo por região é necessário que nos situemos num ponto qualquer do espaço onde haja uma comunidade de sapiens. Para começar, seja uma aldeia. Numa aldeia há pensamentos individuais resultantes de experiências individuais. Há também pensamentos partilhados resultantes de trocas de experiências. Aqui, não deixo de pensar na aldeia do Asterix transportada para o espaço compreendido entre o Tigre e o Eufrates. Entre essa aldeia e as mais próximas, há viajantes e correios, encontros festivos e lutas, que permitem ainda a partilha de pensamentos e a formação, outra vez, de um pensamento comum. O que é partilhado tende a consolidar-se por conformismo social e pela autorealização de profecias. O que não é tende a conformar-se ao espaço mais limitado de uma vida singular ou a desaparecer. Seja uma comunidade alargada uma comunidade maior que as aldeias com que iniciámos esta viagem ficcionada ao passado. As comunidades alargadas envolvem também os grupos nómadas que se movem entre elas. Há então propagações de pensamento, vindas de todo o lado, para formar o todo, ou seja, uma vez mais, um pensamento comum. Há limites geográficos, naturalmente, como seja a língua, a organização política e a religião. E há instrumentos para forçar esses limites, como o comércio, a deslocação de populações e o exército, e o expansionismo pelo conluio dos três factores aludidos. Há forças centrífugas e forças centrípetas devido à formação de centros (políticos, religiosos, económicos, intelectuais) onde se operam normalizações (por legislação, por exemplo, por persuasão, pela força). O crescimento territorial dos centros não sei se é a razão do alargamento da sua influência, se a sua consequência. Provavelmente as duas são o mesmo. Os grandes centros estão necessariamente em contacto, seja por itinerário terreste, fluvial ou marítimo, ou por deslocação de pessoas, de artefactos ou bens consumíveis por esses itinerários. A pesar das barreiras linguísticas, religiosas ou políticas, há ainda um pensamento comum partilhado. Pensemos numa onda que se forma algures no mar e se vai desfazer numa praia. No limite, não há mais propagação. A praia é o ponto de confluência, de encavalitamento e de posterior apaziguamento de distintas ondas que se opõem. Usemos então a metáfora: um movimento regional é cada uma dessas ondas e a região a localização do seu deslocamento no espaço.
Situemo-nos num ponto do espaço qualquer, seja por exemplo o Mediterrâneo de há três mil anos atrás, mais século menos século. Chamamos às civilizações maioritariamente semitas a leste do Egeu o Oriente. E especificamos que se trata do Próximo Oriente porque nos sentimos, de certo modo, envolvidos nele. O Ocidente, a região em que nos situamos, emerge do choque das populações indo-europeias que por aqui andavam com o pensamento oriental. Esse choque deu-se na Grécia com a invenção do pensamento racional, de novas experiências de organização política e uma nova estética que fizeram o seu curso e se impuseram. Chamaram-lhe o milagre grego.
Acresce que tornou-se um centro de propagação. Propagação para leste com a helenização. Para oeste com a romanização.
O Ocidente é criado a partir do Oriente. O pensamento nasce no oriente e morre no ocidente seguindo o curso solar. A diáspora judia e as invasões árabes são novos retornos do oriente ao ocidente. O ocidente a norte do Mediterrâneo torna-se cristão e a sul muçulmano. À tensão leste-oeste junta-se a norte-sul.
Mais tarde, juntar-se-lhes-á o Extremo Oriente e o Extremo Ocidente com o emergir de grandes potências (China, Japão, Estados Unidos), as revoluções industriais e duas guerras ditas mundiais.
O pensamento tende a disseminar-se na forma de senso comum. De certo modo, o senso comum é uma maneira de sentir e um conteúdo sensorial partilhado, senão por todos, por uma larga maioria. É natural que o modelo heliocêntrico faça parte hoje em dia do senso comum das pessoas, pelo menos de uma parte delas que é alfabetizada. Os progressos no conhecimento, e sobretudo do conhecimento científico, têm um peso acentuado, mas não decisivo, na alteração das percepções e dos juízos do senso comum. Pequenas alterações na maneira de pensar agem como mutações em processos evolutivos. Se encontram um meio adequado, ou se o meio habitual sofre alterações catastróficas, impõem-se ao modo habitual de pensar, ao mainstream, alterando o seu sentido geral e impondo um novo paradigma. Isso acontece sempre que um meio está preparado para receber essas mudanças. Como aconteceu no norte da Europa com a protestação do cristianismo tradicional. Não se tratou tanto de um protesto, mas da aceitação da culpa como uma condição prévia para a assumpção da liberdade individual. Norte e Sul no contexto intra-europeu.
É óbvio que toda a gente pensa de forma diferente na medida em que cada um pensa à sua maneira. Mas, as diferenças na forma de pensar resultam da situação particular de cada um e são muito parcelares. E mesmo na multiplicidade das diferenças há muita comunalidade nas maneiras de pensar. É o pensamento de grupo. Mas há um núcleo duro que resiste à diferença é que tende a ser permanente. É o pensamento default que sustenta o senso comum.
Do indivíduo e da aldeia chegámos ao Mundo. E, com a chegada ao mundo, acreditámos viver um pensamento global.
Devemos interrogarmo-nos sobre se esse pensamento global existe, de que se compõe, qual a sua real dimensão e qual a sua relevância comparando-o com os pensamentos locais em qualquer escala (região, aldeia, indivíduo).
Reparemos no regresso dos pensamentos regionais no contexto de um mundo globalizado. Os pensamentos regionais só subsistem quando em tensão. Mesmo que a tensão tenha adormecido há mais de um milénio. Então, dá-se o retorno da jihad.
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Enquanto alinhava estes pensamentos, o sol tinha irrompido e cintilava nas frestas mais altas das copas das árvores elevando-se com um calor ainda morno a Oriente. Porém a Norte, em toda a extensão da horta e do pomar, estava tudo impregnado de um gelado manto alvar. Tremi com frio. Entrei para a tepidez do quarto a repor o quantum de sono que me faltava.
Isto foi há coisa de um mês atrás. Há dias assim!
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Deu-se o caso de este ano eu não ter ido a Lisboa e, por esse facto, não ter participado na manifestação do 25 de Abril.
Manifestar, porquê, para quê?
Ora, manifestar é dar a conhecer, é expor em público, é expressar. Dada a expressiva relação da palavra com a raiz latina " manus" (em português, "mão"), a minha definição preferida de manifestar é tornar palpável. Geralmente, acreditamos que aquilo que existe realmente, por oposição ao que subsiste apenas nos sonhos, é algo que nos é dado por palpação. Para saber que estou acordado, e que não estou num sonho, belisco-me e a resistência da totalidade do meu corpo à compressão exercida por essa sua parte que é a mão é prova suficiente de que existo, e de que existo de uma maneira particular, isto é, estando acordado.
Através da manifestação, tornamos patente a existência vigil daquilo que queremos expor. Só o que existe pode ser exposto, embora a maior parte do tempo subsista meio adormecida. O propósito de uma manifestação é acordar o que está meio adormecido, é espevitar a coisa para sair do seu torpor, é torná-la lúcida e vigilante.
Note o leitor, entretanto, que lucidez e vigilância são, precisamente, duas marcas da consciência. A manifestação provoca o vir à consciência e o manter-se na memória.
A outra parte da raiz latina é "festus" o que podemos traduzir, de uma forma ligeira, por "contente". É isso, precisamente, que nos sugere uma manifestação: não só compelimos algo a vir à nossa presença, a vir a público, como o fazemos de forma festiva, emocionada, feliz.
A manifestação do 25 de Abril é uma festa nacional e realiza-se em qualquer lado do mundo onde haja portugueses mas assume um principal significado quando se realiza na capital do País. Não por a capital ter algum privilégio sobre as outras partes do país. Se o 25 de Abril trouxe muito de inovador, uma das suas notáveis inovações foi a descentralização e a devolução do poder às comunidades locais. Mas a manifestação do 25 de Abril realiza-se na Avenida da Liberdade, e não no Terreiro do Paço ou no Carmo onde os acontecimentos de 74 agora evocados se deram. Nessa avenida, a manifestação torna-se a manifestação da liberdade porque é local que a reivindica e exige.
Gosto de sair do meu exílio em Santarém e ir a Lisboa manifestar-me no 25 de Abril. É o ponto de encontro de muitos amigos de diversos contextos da minha vida. Não foi esse o caso este ano. Por muitas razões e por nenhuma especial. Estou aqui vegetalmente plantado no Tremontelo e animalmente muito desgastado e, depois das chuvas tempestativas e do regresso súbito e em força da Primavera, o calendário do ano agrícola não permite mais interrupções . Fiquei por aqui a tratar dos meus cravos para que não murchem e para que voltem todos os anos por esta altura à floração, à sua manifestação de existência palpável e festiva.
Fiquei, entretanto, com o pensamento a vaguear sobre a Avenida da Liberdade, a matutar que era a primeira manifestação após os anos de travessia no deserto e a imaginar um mar de gente feliz a desfilar. Como já não se via há muito tempo. E, a matutar assim, fiquei à espera que a realidade me desse razão.
Ao pôr-do-sol andei a regar. As últimas chuvas já foram há uns dias e estes dias têm estado muito quentes. É que, à mais pequena distração, pode ir-se o trabalho de meses. Isso aplica-se às vidas vegetal, animal e cívica.
25 de Abril sempre!
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Os seres humanos provaram e gostaram da comunicação à distância ou, numa linguagem refinada, da telecomunicação.
Comecemos por ver como era dantes. Dantes, havia a comunicação de proximidade, o que exigia a presença física daqueles que entre si comunicavam: De cara a cara, olhos nos olhos, de mãos dadas, abraçados, à distância de um murro, a acenarem-se ao longe, ao cruzarem-se um com o
outro, na fila da bilheteira, fosse ela do comboio ou do cinema, sentados à mesma mesa, a rodopiarem na pista de dança, a acariciarem-se, a berrarem um com o outro, a segredar-lhe aos ouvidos, a exalar fedores pestilentos ou fragrâncias de patchuli ou rosa bacará. Mais longe ou mais próximos, a comunicação fazia-se pelos sentidos: Escrutinava-se a multidão para encontrar uma pessoa e vestia-se de maneira a ser notado. Gritava-se impropérios ou chamamentos ou ciciava-se palavras meigas ou segredos. Lavava-se e perfumava-se para atrair as atenções e os desejos ou marcar distâncias, mas os odores naturais eram muitas vezes preferidos. As peles tocavam-se e electrizavam e transmitiam calor ou refrescavam-se. As lágrimas sabiam a mar e evocavam a saudade.
Vieram os telefones, as telefonias, as televisões, as aparelhagens sonoras, os computadores, a internet, o geoposicionamento por satélite, a fotografia e a música digitais e as misturas disto tudo nos smartphones e tabletes. Estabeleceram-se os serviços de caixa de correio de voz, correio electrónico, chat, mensagens por texto, videochamada, o blogue, os social media. Há promessas, que vão ser cumpridas, de tridimensionalidade e estereofonia perfeitas, de sensações tácteis, olfactivas e proprioceptivas. Foi-se instalando em surdina a comunicação à distância nos nossos ambientes e nas nossas vidas, as pessoas provaram e gostaram.
A comunicação à distância dá-se, precisamente, à distância e in absentia, sendo muitas vezes em diferido. Não olhe para mim, olhe para o aparelho e ele fará o resto.
Ela passa o dia sentada junto ao ecrã a receber e a responder a emails e aspira pela chegada da hora em que irá estirar o corpo todo no ginásio. Quando chega tarde a casa vai tão estoirada que só quer abandonar o corpo na mesma cama onde se encontra outro corpo abandonado. Ele está na paragem de autocarro visivelmente agastado pelo facto de não ter wireless e não nota na enervação que está a sofrer a esplêndida rapariga que espera também ao seu lado com a bateria do telemóvel esgotada. O facto de se roçarem um no outro foi meramente casual e prontamente esquecido. No futuro, as pessoas hão-de roçar-se umas nas outras para gerar energia para carregar os telemóveis.
"Oi! |
Decididamente, os seres humanos provaram e gostaram da comunicação à distância.
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O exílio, que nunca experimentei, ou a reforma, que vai dar no mesmo, é uma espécie de não estar bem aqui. Não estar bem, não como oposto a não estar mal, mas como um certo não estar completo, um certo não estar rigorosamente.
Há um estar aqui nas terras de origem que se compraz apenas no cumprimento das expectativas inerentes ao estar aí nessas terras. Isto falando em geral; pois, em rigor há uma única terra de origem que é a do eu, falando cada um de si. Se te afastas, confrontas-te com modos de estar que te são alheios e ficas como que sem jeito. O aqui em que te passas a mover é estranhado, movediço, sem fundações. Mas só para ti e nunca para os outros. Então, dás-te conta que és um estrangeiro lá onde te encontras. Não estás em, apenas vives em. Isso, ao cabo de um tempos de exílio, vai levar-te a sentires-te igualmente estranho lá no sítio de onde vens. Um sítio de onde és, mas em que não vives, paira lá em cima, como o céu e o inferno dos crentes. Quanto se experimenta a estranheza, e não interessa se se é deslocado ou retornado, ela enraíza-se. A pergunta "quem sou eu?" metamorfoseia-se numa pergunta sem sentido se não há sentido para o "onde sou".
Onde tu estás é onde está a tua língua. A língua transporta consigo todos os significados e representações de uma vida. A vida é feita de longos pedaços de monotonia, que te estabiliza os pés sobre a superfície do chão, e neles a vida não vacila, porque se enraizou o suficiente para resistir a todos os ventos e vendavais. Mas é feita também de rápidas sacudidelas que tudo mudam e que, ou deterioram e arruínam uma vida, ou a prolongam na exploração encantada de novas e imprevistas vias. No exílio, não sei. Mas, na reforma, a língua é onde se exercita o solilóquio dos pensadores desamparados que tentam reatar as experiências passadas numa unidade de sentido, tarefa que parece impossível na medida em que as memórias são todas elas centrífugas e dispersam-se no além, nos pontos do espaço carentes de matéria.
Quando se viaja num país estrangeiro, e esse país não é a Espanha ou a França, esses países aqui ao lado, cujas línguas são filhas de uma mesma mãe e de uma mesma história, que também o é da nossa, mas se viaja para além de qualquer cortina ou muralha em que as línguas se distanciam em sonoridades, significações e experiências, e, sobretudo, quando a viagem não tem um propósito definido e se deve antes ao acaso, e é esse o caso da minha estadia estes dias em Krakow, sabe-se o que é estar fora, sabe-se que este lugar não é o nosso, nem pode ser, e que jamais o será.
A estranheza definha o humano que há em nós. Qualquer lugar pode transformar-se numa estação interplanetária onde se cruzam diferentes espécies que respiram em diferentes atmosferas, comunicam de diferentes maneiras, têm outros modos de conhecer e amar. Os gatos do Tremontelo têm mais humanidade que os sapientes com que me cruzo num lugar estranho, mesmo que estranheza do lugar se mascare de vizinhança um pouco mais distante. Chamar-lhe Espaço Shengen é confirmar o seu carácter distintivo de espacialidade. Não estou num país estranho, estou no Espaço o que, no ponto de vista da Terra, que é a nossa terra, é como estar no Céu, o lugar para onde se sobe quando deixamos derradeiramente para trás a nossa humanidade. E no Céu, essa terra prometida por todos os deuses e profetas, teremos todos nós o dom das línguas, o que quer dizer que não sentiremos a estranheza de sermos outros, mas teremos garantida a experiência de sermos irmãos do nosso próximo. Próximo?
Ser pessoa, ser o rosto público de um eu, é tudo o que nos resta quando nos despojamos da nossa natureza de sapientes. Os platónicos viam nessa natureza a carcaça a que estão amarrados os prisioneiros da caverna. A realidade em que julgamos viver seria, segundo eles, uma mera ilusão. O eu é de outra esfera, de outro tipo de realidade. O eu pertence à hiper-realidade.
Vários milénios de história, de experiência colectiva representada, definiram a hiper-realidade como o lugar do espírito, isto é, de tudo o que é indiferente ao meu sentir sensorial e ao meu agir muscular e glandular. É um lugar em que as plantas não lutam para sobreviver em condições ambientais adversas mas estacionam, perpétuas e floridas, nos vitrais de toda a casta de lugares espirituais. Krakow católica é um lugar cheio de igrejas e os seus sinos repicam com regularidade para nos lembrar que não somos deste mundo e que, neste mundo, somos apenas transientes. Em todos os lugares há dessas marcas, como Jana Pawla II, que o diabólico processo de eumerização converteu em deus local.
A tendência para renegar o mundo e a realidade estritamente real, isto é, a realidade das coisas por oposição às entidades imaginadas, é recorrente e não exclusivamente religiosa. A hiper-realidade tecnológica e agnóstica em vigor é a realidade virtual. Apesar de a virtus, com o significado de força varonil, competir com o spiritus, o sopro ou espirro divino, o estado de negação continua patente, com a diferença de que o eixo orientador do espaço hiper-real se deslocou do teotropismo para o egotropismo. E nada garante que a situação não se reverta, vivamos o tempo para o ver. Na minha opinião, o movimento histórico é pendular e alicerça-se na condição bipolar da mente humana. Deus e o Eu são as duas máquinas construídas pelo cérebro para conduzir os destinos do sapiens. E ambas estão em luta porque cada uma quer ser a outra.
Está-se o tempo a abeirar das seis da manhã e devo levantar-me cedo. Hoje é dia de fazer uma marcha matinal até ao jardim botânico local e a excitação tem-me mantido acordado. O nosso cérebro é uma máquina sofisticada e tem destas coisas.
Quem sou? Onde estou? São questões naturalistas ou metafísicas? Procuro não me perder. A essência do humanus é o humus, a argila moldável. Sou pó e em pó me reverterei. Sou animal, isto é, seria uma planta se não fosse consciente e dotado de locomoção. Tenho portanto que cuidar do facto de não ter raízes e procurar não me afastar demasiado para não perder a relação do lugar a que pertenço. Porque viajar é, em mais do que um sentido, perder lugares.