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A descoberta desta manhã não merece um único qualificativo. É uma pura descoberta, um "ah!" prolongado e suspenso apenas. Quase que não merece descrição, a única possível sairia minguada, desconexa, incompreensível. Por isso, passemos à frente!
Os dias continuam iguais a si próprios, agora secos e frios. Também já foram iguais a si mesmos, mas chuvosos e escuros. Pergunto-me se os dias são iguais a si mesmos ou se são o mesmo dia, sendo o dia de hoje o dia de ontem, sendo a noite a separá-los uma ilusão, uma sombra um pouco mais duradoira a ocultar a luz do sol, desse astro luminoso que nos impõe o tempo. Afinal, a vida é apenas um dia.
Isto é aqui, no meio do campo, onde as árvores se conservam de pé e os passarinhos piam de manhã. Os gatos esperam rotineiramente a distribuição das suas rações para depois escolher um lugar para dormir, um lugar ao sol, claro!
A parafernália de instrumentos electrónicos plantada neste ermo bucólico faz irromper com um estrépito brutal e explosivo a insensatez do "mundo" de lá de fora. É um filme mau em todos os sentidos. Cabeças degoladas pelo fanatismo islâmico, o assassinato das classes médias, a política de sarjeta, o sofrimento da pobreza e da doença colectivas, os elementos em fúria, a estupidez e a ganância dos banqueiros, a teimosia de deus e dos seus acólitos em amarrar a vontade das pessoas e em ceifar-lhes a inteligência.
Aprendi ao longo da vida a acordar à justa no início dos pesadelos. É mais difícil desligar a televisão ou o iPad. A tentação é não os ligar. A vida assenta de novo. Experimentas a cumplicidade felina. Ave, Farrusca! Ave, Agnus! Ave, Peto! Ave, Rutschkinha! Ave, Amarelo! Ave, Cenoura! Ave, gatos anónimos do meu quintal!
E instala-se o sentimento da vida, o passar lento desse único dia. Experimentas a duplicidade do tempo. Um tempo assimétrico que conduz num só sentido, arrastando consigo a elasticidade e a resiliência do corpo. Um outro tempo simétrico que, chegado a um ponto de que não te dás conta, esbarra numa barreira invisível e te inverte a direcção fazendo-te sentir muito jovem, depois criança, cada vez mais criança, cada vez mais perto do mistério, o único mistério que há no mundo, o do nascimento, o do dia em que despertou a consciência e em que criaste a totalidade do que existe.
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Acordo cedo, sem sono. Então, como sempre, rapo do iPad e ponho-me a deslizar o estilete, ora para a esquerda, ora para a direita, à procura de um interesse.
Quando passeamos no campo, são os interesses que vêm ter connosco. Passeamos geralmente absortos nos nossos pensamentos que se encavalitam uns nos outros em ritmo lento, despreocupados, sem requisitos de ordem ou de rigor. A paisagem acompanha o nosso olhar e a nossa escuta pré-atentivamente. De vez em quando, o olfato também. Porém, quando passeamos no campo, os interesses rompem o quadro, embora raro, e manifestam-se impositivamente.
Não é o caso do iPad. Os interesses pululam por lá, a competir por uma oportunidade. Estão alinhados em quadrícula como um pelotão em ordem unida. Dignos exemplares de brio e compostura. Um dia foram lá postos para quando houvesse tempo. E como tempo há pouco, e na maior parte dos casos é coisa que não há, os que resistem são os que vão escapando à delecção.
Quando se aponta para o interesse na maquineta, ele abre-se imediatamente, como uma flor a desabrochar ou uma vagina em volúpia aceitante. E penetramos o interesse e ocupamo-nos dele. No entretanto, como um ladrão à socapa da noite, o sono instala-se de novo sorrateiramente. Como sempre.
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Para me deixar maldisposto, rezingão e quezilento não há como os dias de natal. Digo dias, e não dia, porque a imoralidade já permitiu que a moléstia contaminasse os dias, se não as semanas, à volta dela.
Poderia armadilhar 4 ou 5 argumentos válidos e robustos contra o natal, mas a razão não é para aqui chamada, que tem o seu lugar noutras ocasiões e noutras paragens. Falo dos sentimentos de mal-estar que a quadra me provoca. As razões são impessoais, e portanto discutíveis. Os sentimentos não são e ai de quem ouse discutir os meus!
Os sentimentos provêm do acesso consciente às emoções, este tipo de comportamentos rudimentares gravados a escopro e martelo no nosso blackboard biológico muitos milhares de anos antes de andarmos a grafitar bisontes nas paredes das grutas. Ele é coisa que nos sai disparada muito antes do que vamos pensar quando houver tempo para isso. E fica aqui a ruminar, persistentemente, até putrescer gerando a má têmpera ou que se chama os maus fígados.
É essa a magia e o poder do natal: o de tornar-me azedo.
Quando isso acontece, escrevo. A escrita é um poderoso lenitivo. Também escrevo, noutras alturas, quando estou bovinamente feliz.
Assim, fiquei a acreditar que a escrita nasce do corpo, das entranhas, das emoções. E que só mais tarde vem à cabeça buscar materiais e ferramentas de produção.
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Eu achava que era menino: pensava como um menino, sentia como um menino, corria atrás do bem estar e dos gozos imediatos, procurava chamar a atenção dos outros, acertava o comportamento pelo código da boa conduta, dentro da lei e dos usos, e de uma maneira geral nutria o sentimento de segurança que confere a cada um o pertencer a uma família, a uma cidade, a uma sociedade. Para completar esta premeditada e comprometida meninice, este jogo sujo de parecer um bom menino, acreditei, como me diziam, que até parecia um homem e, para satisfazer as expectativas universais, fiz-me um homem, creiam que me sentia ser um homem, com deveres e responsabilidades, jugo indispensável à quem quer permanecer menino apesar das aparências. Menino adulto, menino adulterado, mas sempre menino.
Quis a roda que preside às existências, sortear-me com o privilégio de um estado de saúde positivamente estável, e um vigor físico que ainda não cedeu aos caprichos da gravidade e da idade. As doenças conhecidas vêm de um passado remoto, alinhadas pelos genes com as gerações que me antecederam, e controlam-se a poder de comprimidos numa fuga em ziguezague como a do recruta no campo de tiro.
Eu achava que era um menino por dentro e por fora, nas aparições a mim e nas aparições aos outros.
Enquanto me estreava na meninice, sofistiquei na aprendizagem dos números e na agilidade das contas. Sou de uma geração que aprendeu com orgulho, e de cor, as tabuadas. E, a partir de ai, que se exercitou na práctica do cálculo mental. Era giro e até tinha montes de utilidade. As aplicações iam desde o controlo da colecção dos cromos das raças humanas até à gestão dos centavos com que os comprávamos. Não nos deixávamos enganar nos trocos e tínhamos sentido de poupança. Sabíamos o tempo que faltava para galgar cada degrau do crescimento e fazíamos rezas para que este passasse azinha, tempo era o que não faltava.
Havia os velhos, claro! Eles tinham o aspecto engelhado de quem se tinha cansado de acumular tanto conhecimento e tanta experiência. Chamávamos-lhes os avós, pessoas engraçadas que só elas sabiam contar estórias. Já eram crescidos e por isso tinham deixado de crescer. Iam ficar velhos para todo o sempre. É claro que nunca deixavam de trabalhar, naqueles tempos não havia reformas e trabalhar era tão natural para o comum dos mortais, como tomar banho todos os dias era para os ricos. Os velhos trabalhavam até poder. E garanto que podiam muito. Mesmo curvados e agarrados a um pau.
Continuo a achar-me menino apesar de um ou outro detalhe. O problema é que o diabo não está nos detalhes, o diabo está nos números.
E de que maneira!
Quando era muito menino ia para a terra nas férias grandes. A terra distava a um dia de viagem por comboio da grande cidade e chegava-se lá cheio de fuligem e empanturrado de uvas que se apanhavam quando a composição parava, para apanhar a lenha de alimentar a máquina, ou para apagar os fogos que esta espalhava por toda a parte. À chegada, a estação estava apinhada de gente: Era a família, um punhado de tios, mais de duas mãos cheias de primos e atrás de todos, claro, os avós.
Era gente engraçada, os avós.
Nasceram ambos no tempo do Senhor D. Luís. Ele pequenino, reservado, hirto, um rosto embigodado que era um espelho de autoridade. A pele tinha o tom da sépia como o das fotografias antigas. Olhava para nós com a compaixão que merecem os refugiados vindos da grande cidade: para eles, nós éramos todos amarelentos, enfezados, passa fomes, que íamos ali a apanhar ares, a comes e bebes e o sentido de toda aquela canseira era voltarmos rosados e bem nutridos devido, seguramente, à pureza do ar das serras, das águas nascidas das raízes dos pinheiros e dos alimentos que vêm da terra. Ela, alta, enxuta, rosto feliz e maroto. Fazia queijos a preceito e contava estórias do arco da velha. Eu gostava mesmo deles é sentia que era retribuído da mesma forma.
Hoje, que estou para aqui a achar-me menino, confronto-me com a crueldade dos números. É que já há muito ultrapassei a idade que eles tinham quando os conheci.
Sem netos a quem contar estórias, sinto-me um menino fora do prazo. Sou velho, mas por calendário.
Por isso, conto estórias ao vento que passa...
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É da mais decente conveniência explicar porque é que se começou uma coisa que não existia. Há algum cemitério das coisas que nunca existiram, não existem ou não virão a existir? Não. Então, porquê arranjar chatices a um blog que estava tão em paz no seu não existir? O cemitério dos blogues mortos é incomparavelmente maior do que o cemitério de Arlington.
Claro que há uma razão. E eu vou explicar como puder, que a coisa não está fácil. Acredito numa verdade simples: por cada Charlie morto dois charlies se levantarão do solo.
Não sou Charlie mas gostava de ser. O problema é que não tenho jeitinho nenhum para rabiscar. Para mim riscos só se for nos audis saídos no totoloto das finanças.
Comprei uma geringonça que me faz desenhos no iPad. O problema é que é barata e não traz software para nos dar jeito para desenhar. Decidi correr o risco. Hei-de consegui desenhar bisontes tão bem como os nossos antepassados cavernículas. Bisontes não digo, talvez camelos com o seu beduíno pendurado pela arriata. Quando não se perceber, ponho uma enfadonha legenda como fazem os putos: "este é o papá", "esta é a mamã". Talvez me safe. Cá me vou safando a escrever ao correr da pena. Tenho é que arranjar tinteiros de várias cores. Cada coisa a seu tempo. Irei pô-los aqui para vocês me mandarem ovos e tomates.
E, se precisar de outros ingredientes, pedirei afavelmente.
Rui Hebdo
PS*: Agora vai sem boneco. Paciência!...
NB*: Estes textos seguirão, sempre que possível, o desacordo ortográfico. Baril!
* PS quer dizer post scriptum e NB quer dizer nota bene que é tudo em latim e não tem conotações futebolísticas ou sexistas.