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O pragmatismo sanchopancesco do Gervásio permite-lhe conceber e descrever a minha travessia do deserto como uma travessia de lugares comuns que, por erro e perdimento, me teria levado ao deserto. É a sua versão, que, creio, satisfará a maioria dos nossos leitores. A minha versão, que assenta no intento do meu projecto, é outra: a necessidade de me perder dos lugares comuns para, finalmente, me encontrar no deserto, me achar no lugar do despojamento.
Neste particular, o Gervásio não argumenta; ralha e tenta dissuadir - como se pôr a saúde em risco não é o que fazemos quando quotidianamente comemos ou respiramos na nossa cidade. Uns grauzitos a mais na temperatura corporal e uma estranha virose nas ramificações pulmonares são parte da circunstância das nossas existências. Mas isso já lá vai!
Como estive ausente, devo a um ror de gente agradecimentos pelos votos de um bom Natal, de umas boas passagens e, agora, de boas Páscoas. Para quem, como eu, não for dado aos rituais cristãos, mas preferir os rituais pagãos da Natureza Mãe, transformo esses votos nas boas passagens do Solstício passado e, agora, do Equinócio da Primavera.
Vou prometer não importunar mais o meu bom Gervásio, esse bom coração romanticamente monárquico, agora tão ocupado e importante com as celebrações da ida da Corte para o Brasil.
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O ensaio "O Corpo e o Lugar" encontra-se actualmente estruturado em 3 temas, designadamente “O Corpo”, “Os Lugares” e “O lugar do não-lugar, ou A nova ordem de lugares”.A presente versão estrutura o primeiro tema “O Corpo” decompondo-o em 4 itens e desenvolvendo os três novos últimos itens. Os novos itens deste tema são:
1.1. O corpo enquanto lugar
1.2. O corpo enquanto lugar da experiência dos lugares
1.3. Os lugares periféricos do corpo
1.4. A inclusividade dos lugares
Ver a 4ª versão.
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Recebi como herança da minha mãe uma máquina de costura impregnada de tempo. Nada percebo de máquinas de costura, mas afeiçoei-me fulminantemente ao objecto. Peguei nela, meti-a no carro, com a ajuda de um vizinho, pois é muito pesada, e trouxe-a para o Sítio do Tremontelo.
A primeira abordagem ao objecto foi declaradamente fácil: reparei o móvel que a suporta como se de um móvel vulgar antigo se tratasse. Depois, o busílis foi descobrir como se abria o tampo do móvel e trazer a máquina cá para cima. Realizada esta proeza tratou-se de a pôr a trabalhar. Lembrava-me, mais pela cadência sonora do que por qualquer estímulo visual, que era preciso dar ao pedal para a pôr a trabalhar. À primeira tentativa não ocorreu nada para além do simples baloiçar do pedal. Inspeccionei a corrente e, verificando que estava fora das guias respectivas, reconduzi-a ao lugar correcto havendo verificado também se tinha a tensão apropriada. Funcionou. Ao menos, havia lá umas coisas que se puseram a mexer.
A máquina apresenta uma anatomia composta de três partes (“Gallia est omnis divisa in partes tres”, não poderia deixar de me ocorrer!): uma base bojuda, à direita, que assenta directamente no móvel; um corpo fusiforme cheio de orifícios que se alonga da direita para a esquerda para terminar na cabeça, a parte que é efectiva na costura. Em termos gerais, e apesar das suas reduzidas dimensões, parece, a considerar o peso metálico, a graça dos contornos, o cromatismo negro e doirado, a locomotiva de um comboio antigo.
Para quem tem como única experiência pregar uns botões ou remendar as bainhas de umas calças velhas afectas à agricultura, a inspecção visual não é de grande auxílio para compreender o seu modo de uso ou a finalidade das suas partes. Já a inspecção táctil das suas formas sedutoramente gráceis, femininas e reluzentes (como a sereia de Copenhaga transmutada em estatueta de bronze) proporciona outras compreensões que a metamorfoseiam de lugar de trabalho em lugar de prazer. Foi essa a razão que me deu alento para continuar a investigar e a aprofundar todos os mistérios daquela esfinge de ferro.
Estabelecera há uns tempos com a minha amável esposa uma rotina segura de telefonemas que nos permite, estando eu em Santarém, ela em Lisboa, um fluxo constante de comunicação em que partilhamos informação, pedidos, afectos e saudades. De lá, peço-lhe que me diga como vai estar o tempo em Santarém nos próximos dias, segundo as previsões do weather.com; ela, que eu lhe traga à volta um raminho de erva cidreira, tomilho, sálvia, ou a caixa de ferramentas para instalar a última aquisição no IKEA. Coisas assim, compreendem? Bem! Numa dessas ocasiões pedi-lhe que fosse à net à procura de um manual de uma Singer com determinadas características. Lá se desenvencilhou com eficácia e, passado pouco tempo, recebi por e-mail um manual da Singer razoavelmente aplicável ao objecto da minha estima.
Aquela noite foi passada em branco, adivinhem com quem.
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Imaginem um pacóvio estirado na cama ao lado de uma boazona, certificada nessa qualidade por sufrágio universal, a ler a página de Economia de um diário qualquer. Assim me olhava especularmente, dividido, como Platão, entre a máquina e o manual, o concreto e o abstracto, a carne e o espírito, o exemplar e o modelo. Não tinha o terceiro caminho de Parménides e os dois cavalos fogosos da minha charrete divergiam como loucos entre os caminhos do ser e do não-ser, indistintamente de saber o que era o quê como oposto a não sei quê.
A intuição cega levava-me a uma Ding an sich intransponível, um ser fetal irreconhecível recolhido sobre si próprio impermeável ao conhecimento. Pelo contrário, a leitura afastava-me fisicamente do objecto, por um lado, mas aproximava-me dele, por outro, através da linguagem. Aquela sewing machine n.º 15 tinha uma cama, um volante e um braço, tinha barras, pinos, alavancas e parafusos. Cada um destes pormenores ia emergindo da sua existência subterrânea e inconsciente para a claridade do ser à medida em que o manual mo permitia etiquetar. Sendo o manual velho e mal digitalizado, as legendas eram um agregado de quadrados negros que se iam encavalitando e empastelando à medida em que as palavras se distorciam para fora da horizontalidade da linha de leitura. Com o editor de PDFs pus as legendas em letra de gente e, em alguns casos comedidamente deliberados, aventurei-me a uma arriscada tradução auxiliado pelo meu Como Fazer (quase) Tudo.
Os nomes tinham-me dado acesso às diversas partes da anatomia da máquina. O conhecimento das partes anatómicas permitiu-me uma lenta, mas conseguída, iniciação às actividades que se podia realizar com cada uma.
Na gaveta do móvel havia, entre várias bugigangas, um ferrinho de pequenas dimensões. Aquilo tanto poderia servir para tirar a cera dos ouvidos como de suporte para as prateleiras amovíveis das estantes da biblioteca. Um objecto daqueles carece de um orifício para enfiar, é o que logicamente se extrai do seu formato. Lembrei-me dos orifícios dispostos em linha recta no dorso da máquina. Verificando a figura, conclui tratar-se do spool pin, o pino para suportar o carrinho de linhas. Encaixava mais ou menos e aguentava um carrinho de linhas de alinhavar que encontrei na caixa da costura, de que me socorria amiúde como substituto do fio dental. Agora, havia que esticar a linha para a esquerda e fazê-la passar, com a ajuda do manual, por uma série de angústias e desfiladeiros até desaguar no buraco da agulha. Mas qual agulha? Encontrei umas três ou quatro com um ar já muito usado num tubo metálico de charuto. Aliviei o grampo da agulha, introduzi esta na vertical espetando-a até ao fundo, e manipulei o parafuso no sentido contrário para a manter bem presa e posicionada. Difícil foi enfiar a linha. Com imaginação improvisei uma daquelas geringonças de dentista com espelho e luzinha e fiz de conta que brocava um dente cariado. Lá entrou mas saiu num parco instante porque, o pezinho nervoso não parando de dedilhar o pedal, levantou-se a alavanca e todo o fio recuou ficando pendente e murcho como uma minhoca flácida na cana de um pescador. Mesmo assim fiquei contente porque o saber fazer já é um princípio de saber; com a prática vem o saber fazer bem à primeira. Mas isso já é o saber completo.
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Outro objecto que havia lá na gaveta identifiquei-o, através do manual, como sendo a caixa da bobina. Esta pequena coisa metálica de curvatura polida e luzidia, que segurava nos dedos da mão esquerda na maneira como instruía o manual, estava-me sempre, e inconvenientemente, a escorregar para o chão.
Segundo o manual, deveria introduzir a bobina com linha na sua concavidade segundo um procedimento que adiante explicarei. Colocava-se-me entretanto a questão de saber como encher a bobina com linha idêntica à do carrinho. A bobina, que a minha amiga Isabel disse, uns dias mais tarde, chamar-se a canela, é como um pequeno carro de linhas, mas achatado e metálico. O manual ensina a utilizar o rebobinador da máquina para encher as canelas. Primeiro há que destravar o volante para isolar o seu movimento do resto do da máquina (stop motion). Põe-se o carrinho de linhas num pino existente na cama da máquina e faz-se passar a linha até ao rebobinador onde se colocara previamente a bobina vazia. Dando sucessivas voltas ao volante a linha vai-se enrolando na bobina, ora num sentido, ora noutro, até obter o enchimento pretendido. O resultado do enrolamento é perfeito, juro que fiquei espantado.
A bobina cheia é então introduzida na caixa da bobina deixando uma ponta de linha de fora. Nesta operação, segura-se a caixa com a mão esquerda e a bobina com a direita. Não percebi se o procedimento é idêntico para esquerdinos. Mas como isso é irrelevante para o meu caso, tentei reprimir firmemente esses pensamentos distractores. A seguir, pega-se na ponta da linha sobrante que, passando através de uma ranhura, vai sair no lado oposto.
Puxei para a esquerda a chapa deslizante da cama da máquina (bed slide) e introduzi a caixa da bobina no local apropriado, certificando-me de que tinha ficado devidamente acondicionada e presa.
O processo de costura numa máquina supõe o encontro de duas linhas que se cruzam no tecido: vinda de baixo, a linha da bobina; vinda de cima, a linha da agulha. Assim parece a costura do tecido das nossas vidas em que se cruzam as linhas da necessidade e do acaso.
Olhei para a máquina e concluí, depois de várias meditações pessoais e evocações de filosofemas pré-socráticos, que a linha da bobina teria de subir através de uma grelha por onde passava a agulha no seu movimento de picotar. Com os dedos demasiado grossos para aqueles espaços exíguos e elementos delicados, desisti após muitos esforços. E acreditem que sou teimoso. Muito teimoso.
Vindo de uma profissão cujo core foi a informática, ficou-me nos hábitos uma deformação profissional que consiste em passar sistematicamente por cima do manual. Ao fim de alguns anos de prática tudo é igual. Mesmo o que é novo, é sempre mais do mesmo. O que dá para uns casos dá para os outros. O único cuidado a ter como medida de segurança é copiar antes de mexer. Estragou, repõe-se. A evidência sobrepõe-se à razão. O manual só é usado como último recurso, depois de todas as tentativas falhadas, depois de inquirir todos os especialistas da respectiva matéria, depois de dias perdidos à deriva na net.
Lá fui ao manual que simplesmente dizia para deixar a linha da bobina caída. “De doidos, só pode!”, pensei.
Baixei a alavanca do pé calcador e comecei a pedalar. Ao fim de três passagens da agulha, as duas linhas estavam em cima da cama da máquina.
E eu ali, estúpido, a olhar para elas.