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in Neste Lugar
Diz-se que uma coisa é verdadeira ou que não é falsa. Quando se fala de coisas, verdadeiro opõe-se a falso; quando se fala de pessoas, opomos pessoas sinceras a pessoas mentirosas: as pessoas sinceras dizem quase sempre a verdade; as pessoas mentirosas estão preferentemente inclinadas a dizer a mentira. É neste sentido que dizemos que uma pessoa é verdadeira ou é falsa, conforme o que ela diz contém o verdadeiro ou o falso. Nas pessoas, o verdadeiro e o falso são propriedades do seu dizer. E que dizer das coisas?
O rato sem fios a piscar uma luzinha vermelha à direita do meu teclado é o rato sem fios a piscar uma luzinha vermelha à direita do meu teclado, ponto final! Não é que não possa dizer mais coisas sobre o rato sem fios a piscar uma luzinha vermelha à direita do meu teclado... Na realidade, posso dizer uma infinidade de coisas mais, mas o rato sem fios a piscar uma luzinha vermelha à direita do meu teclado é o que é, e tudo o mais que eu possa dizer nada lhe acrescenta ou altera a sua realidade. A realidade das coisas é como um fardo que tivessem recebido por herança à nascença. As coisas são o que são, nem verdadeiras nem falsas. Poderão argumentar que o rato sem fios a piscar uma luzinha vermelha à direita do meu teclado é falso, ou porque a luzinha não pisca, por falta de pilhas, ou porque não está à direita do teclado, o que acontece geralmente às segundas feiras porque as senhoras da empresa de limpezas o consideram fora do sítio e o metem sobre uma prateleira de um das estantes do escritório ao lado de outros bibelôs, a miniatura da torre Eiffel, um buda pançudo em jaspe, umas bonecas russas com turbantes variados, o Lampião e a Maria Bonita, uns jagunços de barro lá do sertão no Nordeste brasileiro. Será que o rato sabe disso? A sua factualidade depende dessa mudança? Não. O rato não deixa de ser o que era, o que é e o que sempre será. O que altera é a correcção daquilo que eu digo sobre o meu rato. Se eu mudo o rato da direita para a esquerda, então devo dizer o rato sem fios a piscar uma luzinha vermelha à esquerda do meu teclado para que a minha frase esteja mais de acordo com a realidade tal como eu a percepciono. Uma vez mais, verdadeiro e falso têm a ver com as coisas que eu digo.
Os lógicos sempre disseram que o verdadeiro e o falso respeitam à proposição. Se uma proposição é verdadeira, a proposição que se obtém através da sua negação é falsa. E vice-versa. O verdadeiro e o falso são valores lógicos. Com bases nas proposições, nas operações lógicas (como a negação) e nos dois valores – ponho agora de lado a questão mais complexa das lógicas multimodais – pode construir-se uma álgebra proposicional que nos permite obter conclusões verdadeiras com base em raciocínios formalmente correctos. É esta álgebra que está agora a pôr o meu computador a funcionar. Rezo todos os dias para que ele continue subordinado a esse poder e para que não seja possuído por uns espíritos malfazejos que o põem muitas vezes a desconseguir.
Mas o que me garante que uma proposição inicial - ou seja uma proposição que não é inferida seguramente de outras proposições verdadeiras - é verdadeira, que está conforme com a realidade? Por exemplo, como posso certificar-me que o rato sem fios está a piscar uma luzinha vermelha e que se encontra à direita do meu teclado? E como posso também certificar os outros a quem digo ou escrevo que o rato sem fios a piscar uma luzinha vermelha à direita do meu teclado?
Para atalhar razões e poupar tempo ao leitor digamos simplesmente tratar-se de um processo de verificação. Quando olho para o rato, vejo-o a piscar uma luzinha vermelha e vejo-o situado à direita do meu teclado. Parece que disse tudo, não é? Nada mais errado!
Referi-me a dois processos perceptivos: um activo, o olhar; o outro passivo, o ver.
O rato está permanentemente sob a alçada da minha visão, mas realmente só o vejo quando o procuro, quando olho para ele. Por outras palavras, ver não é um processo neutro, é um processo influenciado por uma intencionalidade, por um querer ver interessado. As pessoas vêem o que querem e não vêem o que não querem. Como diz o ditado, mais cego é o que não quer ver...
Para chegar à verificação da verdade de uma proposição dependo da sinceridade, da honestidade da minha procura. Mas não só. Sabemos que a visão pode ser distorcida por factores pessoais e ambientais: pelo meu estado mental que, em desequilíbrio, pode provocar delírios e alucinações; por condições ópticas particulares do ambiente que podem induzir ilusões.
Para começar, o observador que descreve a realidade que observa deveria estar certificado por entidade idónea e competente, digamos o Colégio da Especialidade de Psiquiatria da Ordem dos Médicos, em como o seu estatuto mental se encontra devidamente balizado entre os parâmetros da normalidade. E não chega: carece também de um controlo rigoroso dos eventos que antecederam a observação não vá esta ser perturbada pela ingestão de alcool, tabaco, estimulantes ou estupefacientes de qualquer natureza. Toda a gente sabe até que ponto um incómodo físico - a flatulência, um enxaqueca ou uma dor de dentes – basta para distrair o intelecto e produzir uma má percepção da realidade.
Mas devemos munirmo-nos ainda de mais cuidados. As histórias das miragens no deserto não são tretas para entreter a imaginação dos sedentários urbanos. Ainda há pouco tempo, em pleno deserto, viajando de burro de Ash Shati para Ubari (Awbari) pude ver os verdejantes prados que se perfilavam à minha frente cheios de canas de milho alinhadas como soldados numa parada, como na levada do meu avô materno na Beira, e as verdes hortas rodeadas de palmeiras e de poços com noras tão comuns na minha memória das qvintas de Bemfica no início dos annos cincoenta. A circunstância completa de quem observa deve ser completamente descrita em protocolo e apensa aos registos da observação. Como num tribunal, as circunstâncias agravam ou atenuam os delitos de observação.
Procura-se muitas vezes compensar o enviesamento pessoal recorrendo a uma multiplicidade de testemunhos: a objectividade resultaria da intersubjectividade dos vários sujeitos da observação. Se dispuséssemos de tempo suficiente, digamos de um tempo infinito, poderíamos discutir as nossas divergências resultantes do ponto de vista particular de cada um dos observadores até obter um consenso generalizado sobre um discurso que descrevesse com perfeição o objecto da nossa percepção. Esse discurso seria verdadeiro.
O desgaste da idade faz-nos apreciar o consenso. Lutas, oposições, pontos de vista são desgastantes. Juntar os inimigos – dizemos, então, os adversários – de antigamente, jogar à sueca e despejar umas loiras, a meio da tarde, só pode ser superado por juntar os adversários de antigamente, cantar uns fadunchos sentimentalões, comer chouriço assado e despejar carrascão aos cântaros pelas goelas abaixo no correr da noite. O consenso é a velhice. Vejamos: o que é estar de acordo? É suprimir os contrários em que discordamos e aceitar as generalidades irrecusáveis. Nada se ganha com as generalidades, tudo se perde na falência dos pormenores.
Uma verdade assim de nada nos serviria. Recordo a minha primeira namorada (que será feito dela?) que me dizia: “Sei que me mentes descaradamente. Mas que me importa, se é bonito!...”. E tinha razão: uma verdade obtida por consenso é uma verdade sem atavios, tão cinzenta quanto um quadro de uma multinacional. Não há como compor a verdade, e isso tem que ser à maneira de cada um. Então, lá se vai a verdade.
Podemos contornar esse obstáculo recorrendo ao olho de deus.
Espantado? Espantada? Não sabe o que é? Receia dar ouvidos a heresiarcas? Acalme-se, não tenha receios: este é, foi e será o processo mais comum e mais aceite de garantir a verdade.
Permitam-me entretanto que perambule um bocadinho até chegar ao olho de deus. Quando andava na catequese em Benfica esforçava-me por ter as lições na ponta da língua para poder ver as projecções de cenas da Bíblia que o padre Proença passava para os melhores catequisandos. Não se riam que não é caso para isso. Conseguem imaginar como seria a vida quando não havia televisão? Sim, não havia televisão! O melhor que um miúdo da minha idade podia desejar era ir duas ou três vezes por ano ao cinema da Av. Gomes Pereira, onde hoje é a sede da Junta de Freguesia, para ver filmes para maiores de 6 anos antecedidos pelos “desanimados”. Para ver o mundo para além da nossa rua era preciso dar corpo e cor aos figurinos e personagens dos romances radiofónicos ou esperar pelo Verão para ir à praia. Então, todo contente, lá ia marcar presença, creio que nas tardes das quintas-feiras, e procurar lugar na primeira fila. As histórias eram maravilhosas: o irmão mau que matava o irmão bom; um homem justo incomodado por deus e pelo diabo, que se conluiavam para lhe matar a família, dissipar a fortuna, e, não contentes, mandavam-lhe chagas com pus que lhe roíam a carne e os ossos; a mulher que fugia da cidade do pecado e que, ao olhar para trás, foi convertida numa estátua de sal; o guerreiro, desgrenhado como um beatle, a quem a mulher, a soldo do inimigo, lhe corta as tranças que lhe davam uma força sobre-humana; o velhote que mete uma data de animais num titanic à prova de tsunamis e fica lá o tempo todo à espera duma pomba que lhe há-de trazer no bico um raminho de oliveira. Histórias maravilhosas que se misturavam com as do Tintin, Mandrake, Mortimer, Tarzan, Zorro, apanhadas à página aos sábados no Mosquito ou no Cavaleiro Andante.
Foi nestas andanças das merecidas projecções das quintas-feiras que me encontrei pela primeira vez frente ao olho de deus. Imaginem um cenário qualquer, uma cena bíblica, deus a entregar as tábuas da lei a Moisés. Deus não está lá em pessoa. Vê-se uma nuvem espessa, tipo uma nimbus rechonchuda e, a espreitar lá por detrás, um triângulo isósceles com um olho incrustado que faísca raios dirigidos para a cena humana: o olho de deus.
O olho de deus é como um bird’s eye view que tudo vê lá de cima. Se estou aqui frente ao monitor, o rato sem fios a piscar uma luzinha vermelha aparece-me à direita do meu teclado. O Gervásio, quando está à minha frente a querer que lhe dê atenção e lhe explique um ou outro pormenor de não sei o que escrevi há não sei quanto tempo, dir-me-á que vê o rato sem fios a piscar uma luzinha vermelha à esquerda do meu teclado. E assim se dá uma inversão de posições, explicada por uma diversa perspectiva, geradora, noutros casos, claro, de guerras e genocídios terríveis. O olho de deus não é assim, não tem perspectiva: tudo o que vê, vê de uma maneira absoluta. As coisas aparecem na sua infinitude no espaço e no tempo.
E há mais. À abrangência acresce a penetratividade: o olho de deus tudo penetra – o corpo, a alma, o espírito, a mente, a consciência. Deus está sempre a espreitar no mais íntimo de nós e a pesar comportamentos, palavras e pensamentos, opondo os bons aos maus, escrevendo-os no Deve e no Haver do céu para ajustar contas após a nossa partida. Como tudo é visível à luz do olho de deus, a verdade é o que deus vê. O melhor que o homem pode fazer para descobrir a verdade é empoleirar-se algures num recôndito do crânio divino e experimentar olhar através do seu olho. A verdade existe e é objectiva: são as projecções no olho de deus.
Aristóteles, Tomás de Aquino e Ratzinger procuram convencer que o ser o humano é particularmente dotado para descobrir a “Verdade” porque há algo nele, um lumen naturale, que é parte da ocularidade divina. Essa luz interna (intellectus, do latim intus + legere) que nos permite “ler dentro” das coisas permite-nos chegar à “Verdade” desde que amparada pelas escrituras, a tradição e o magistério da igreja
católica-romana. E para que todas leiam da mesma maneira há o dogma e a infalibilidade papal. Há também a santa inquisição e a fogueira onde ardem todas as mentiras.
Não é porém a Verdade propriedade exclusiva dos romanos católicos. Hitler, Salazar, Estaline, entre outros, defenderam à sua maneira a Verdade. E tiveram ao seu serviço instrumentos e tecnologia, com mais ou menos ponta, para induzir ou extrair a verdade. O marketing, a publicidade e os meios de comunicação social são os meios utilizados hoje para defender e propagar a Verdade do capitalismo global (“a sociedade de mercado num mundo globalizado”).
“O que é a verdade?”, pergunta o prefeito ao mensageiro da Verdade divina. O evangelho de João não nos dá a resposta.
E se toda realidade fosse uma obra criativa, um romance que vai sendo criado a cada momento ao sabor da inspiração divina? O problema da verdade não se punha e a pergunta de Pilatos, personagem focal deste romance policial, ou romance de série negra, seria: “O que é a realidade?”.
Os gregos deram à verdade o nome de aletheia que, em português, soa a “des-vendamento”. Para eles, verdade é tirar a venda à realidade, é des-cobrir, pôr a realidade a nu. Como isso se faz e o que daí se obtém só o sabemos pelo que eles fizeram: demolindo mitos, pondo todas as verdades à prova, inquirindo, experimentando e testando soluções novas, pondo o dedo nas feridas humanas, incomodando os deuses, desafiando o destino.
É errar, é perder-se e reencontrar-se. Sem poupar esforços. Sem fim à vista.
Os divinos gregos retrataram a verdade na imagem de Sísifo. Para descobrir a verdade, cada um tem que empurrar a sua rocha para o topo da montanha. Só que a verdade não se dá bem com o topo da montanha. Ao atingi-lo, resvala pela vertente abaixo à procura das sombras dos vales.
ETIQUETAS: COISA (RES), DESERTO, OLHAR, PERDIMENTO / ACHAMENTO, VERDADE
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Muito tenho escrito neste lugar em torno do "lugar" mas nada disse, ainda, sobre globalização.
Tudo começa no corpo, muito ante de nascermos: o corpo é o nosso primeiro lugar.
Assim que o aprendemos, começamos a explorar outros lugares. Escadotes, cadeiras, portões, vidraças, máquinas de costura são alguns dos objectos que povoam os nossos lugares. Que utilizamos com frequência.
São os nossos lugares-comuns.
Com o passar do tempo tornam-se invisíveis, raramente olhamos para eles; e, quando olhamos, não os vemos. Só olhando nova e fixamente para eles, o que só é possível pela escrita, os voltamos a ver e a compreendê-los na sua intimidade. Humanos gostamos pouco do vulgar, do comum, do habitual. Estamos ávidos da moda e das novidades dos anúncios publicitários, ansiosos pelas notícias dos telejornais.
Porém os gatos interrogam-se sobre os lugares humanos, são curiosos.
Usando o verbo, e a interna oposição símbolo-diabo, criamos os lugares. Sobretudo aqueles lugares que parecem estar para além de nós, do nosso corpo e da natureza. Arranjámos vários nomes para convocar esses lugares do além: o espírito, a cultura, as crenças, o sagrado, eu sei lá. Depois, criámos os deuses para os povoar. Mas, os deuses ganharam vida própria e acabaram eles próprios por ordenar os nossos lugares. Humanizaram-se, tornaram-se pessoas como nós, movidos por paixões, ciúmes, invejas, e destruíram-se uns aos outros, utilizando os humanos como carne para canhão. Os vencedores acabaram por invejar o nosso corpo e incarnaram a natureza humana.
A verdade primitiva é a verdade de cada lugar. É a claridade do afecto que ilumina cada lugar na partilha humana. Com a revolta dos deuses e a usurpação do poder pelo deus judeu a verdade foi erradicada dos lugares pelo olho divino e desviada para o não-lugar fundamental: o ab-soluto.
A Mátria é o lugar de origem dos humanos, o lugar de onde cada um de nós provém. A nossa mátria é a Língua Portuguesa que está convocada a ser o nosso destino: o 5º império, o lugar do encontro universal dos povos.
Querem-nos fazer acreditar agora que chegámos ao fim da história. Afinal andávamos todos enganados. O que havia para descobrir está descoberto: é a Lógica do Mercado. Deixem o mercado funcionar e seremos todos homens livres trocando o que oferecemos pelo que procuramos. Tudo funciona equilibradamente guiado pela grande Mão Oculta. O Estado, o público, ou outros crimes contra a livre concorrência, têm os seus dias contados: a fusão das tecnologias da informação com as telecomunicações, a nanotecnologia e as outras tecnoquaisquercoisas permitem a livre circulação de informação e a comunicação permanente e síncrona de todos com todos. As matérias-primas, a mão-de-obra, os capitais, a informação estão à distância de um clique. Estamos todos em todos os lugares ao mesmo tempo: a globalização.
Lembram-se daquele jogo com casas vermelhas e hotéis verdes que corriam, movidos por dois dados, entre a casa da partida e a prisão? É assim a globalização dos nossos dias. Um conjunto de operadores olha para o mercado cá de cima, lança os dados: "Um, dois, três, quatro, cinco". "Compro 300 mulheres, por 30 doses de branca". "Queres desipotecar essas duzentas crianças? Dou-te um carro anfíbio, um lança mísseis e 100 kalashnicovas". "Tire uma carta da sorte: Saiu-lhe um político corrupto. Avance até à casa da partida sem passar pela prisão". E as notas passam de mão em mão. Até haver um único senhor do mundo. Como aconteceu com os deuses!
A posição que defendo é que não começou agora a globalização. Esta que nos apregoam é o canto de cisne da globalização genuína que se iniciou no final da idade média e que se caracterizou pelas Descobertas. A que agora se estabelece é o começo de uma nova Idade Média. Que será mesmo uma Idade das Trevas.
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As coisas acontecem como a gente não espera e isso maravilha-nos. Sempre me interroguei como se forma o ponto numa máquina de costura? Uma linha desce, puxada pela agulha onde está enfiada; a outra sobe, não se sabe como; ambas cruzam-se para formar o nó. Estranho, não é?
Afinal o processo é simples e óbvio. Descobri-o no site brasileiro da Singer. ( E porque é que as empresas em Portugal não conseguem satisfazer os seus clientes imitando as suas congéneres de além mar?).
Exclamou o Daniel: "Genial! o que é, ao lado disto, encher placas gráficas com circuitos electrónicos?".
Ele tem muita razão ...
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Há quase meio século, estávamos em regime fascista, estudava-se o conhecimento (permitido) da coisa pública. Como cidadãos arregimentados tínhamos obrigação de conhecer e reflectir sobre os fundamentos das nossas obrigações para com o Estado e da nossa devoção para com a Nação eterna. A matéria em causa era apelidada de “Organização Política e Administrativa da Nação” e conhecida abreviadamente por OPAN.
A fonte oficial de conhecimento era obviamente vesga no que se referia ao conteúdo e enviesada quanto à isenção intelectual e ética. Mas tinha uma virtude irrefutável: abria-nos um apetite voraz pela matéria que nos impelia à procura obsessiva de um complemento de suprimentos alimentares noutras fontes no grande mercado das ideias.
Em tudo o regime actual se opôs ao regime fascista.
Se o regime fascista tinha um Estado forte a governar a Nação, anda hoje a Nação a desgoverno e o Estado a governar-se como pode. Parece a Nação a locomotiva lançada sem condutor a todo o vapor por esses carris fora; as forças que a governam são todas exteriores; a sua acção limita-se apenas a agulhar os carris de modo a frenar ou a acelerar a sua velocidade e a imprimir-lhe rumo e orientação; o Estado é a mão-de-obra que essas forças utilizam para materializarem os seus desígnios.
Tinha o regime fascista aparelhos, de propaganda ou de repressão, para ecoar os sentimentos fervorosos dos adeptos ou silenciar as consciências dos opositores. Não era formalmente nem materialmente uma democracia mas teve o mérito de ser um viveiro de democratas, esclarecidos e activos. Hoje, a Nação limita-se a ter uma “democracia” meramente formal e residual, apoiada sobre o voto inútil e a farsa do “estado de direito”, o aparelho repressivo da “economia de mercado”.
O regime fascista tinha uma mão forte sobre a economia, cujos sectores “core” estavam nacionalizados ou sob tutela, conseguindo garantir uma economia de sobrevivência num mundo isolado e cercado. Conseguiu o regime actual desmantelar e vender precipitadamente e ao desbarato todo o património público e deixar-se o Estado enlear e manietar pelo obscuro sistema financeiro internacional, pelo poder das multinacionais petrolíferas e pelos ocultos poderes económicos de um mundo onde imperam os gigantes do tráfego “ilícito”, seja este a venda de crianças, de mulheres, de droga, de armas, de fome, de doença, de morte. Sem visão, cedo decretou que este não era um país de vocação agrícola e pagou aos agricultores para arrasarem a produção cerealífera, os arrozais, as vinhas e comprarem Mercedes, deixando a boca do povo à mercê das marés especulativas das bolsas internacionais dos alimentos. Deixou morrer as indústrias tradicionais. Desacreditando o País, abafou o turismo.
São a tal ponto inúmeros e conhecidos os casos que não acrescenta valor ilustrá-los. Basta inumerar as medidas políticas em curso que visam preparar a privatização de toda a área social, através da liquidação do sistema de Segurança Social, do Sistema Nacional de Saúde, da rede pública escolar. As medidas para minar a cultura, a segurança interna e a justiça e pô-las ao serviço das minorias possidentes e dos interesses estrangeiros.
Mas a acção mais hedionda do actual regime político foi a eliminação da OPAN.
O antigo regime tinha um partido único. E também tinha a oposição. O antigo regime tinha os censores, as prisões e a tortura. Logo, a oposição tinha os seu heróis. A reflexão e o exame de consciência política sobre o estado da Nação fez-se todos os dias – em contínuo crescendo até ao último dia - nas fileiras do exército colonial, no seio da igreja católica da Concordata, na agitação dos sindicatos corporativistas, nas escolas e universidades, nas fábricas e nos escritórios. A consciência cívica e a militância oposicionista no antigo regime tiveram um terreno de cultivo fértil: a OPAN.
O novo regime tem dois partidos únicos: a maçonaria e a opus dei. Embora em posições antagónicas na luta pelo poder, ambas servem o mesmo patrão: a Internacional do Dinheiro.
O novo regime é um Estado de cidadãos acéfalos, ignaros e acríticos. Eclipsou ou exilou os intelectuais, substituindo-os pelos novos clérigos. Eliminou a OPAN, não deixando nada em seu lugar. Deixou secar as ideologias para que, no deserto das ideias, se multiplicasse a praga do liberalismo, as tábuas da nova aliança sem conceitos nem sentimentos.
O novo regime é o oposto de um estado laico. É um regime transitório para um estado teocrático sem religião.
E a Nação?
Até o pouco, mas fundamental, que lhe restava, a Língua Pátria, foi apresada e vilipendiada pelo Estado.
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Quando se pergunta a razão por que não se é alguma coisa parece estar implícito que há algo que indiciaria objectivamente, ou que alguém poderia ter sérias razões para pensar, que se pode ou se deve ser o que se diz não ser.
Bertrand Russell ao interrogar-se porque não é cristão analisa sistemática e minuciosamente vários aspectos que considera relevantes do que é ser cristão. Nunca afirma explicitamente que há razões pelas quais vale a pena não ser cristão, que apenas fica implícito na desvalorização racional e ética do cristianismo que sustenta em cada tópico da sua dissertação. A sua proposta final é, de certo modo, comum a todos os ateus contemporâneos: cortar com os grilhões do passado, manter a lucidez e olhar o presente e o futuro da humanidade com mais inteligência.
O tipo e a estrutura da abordagem parecem-me bons pelo que irei segui-los na defesa do problema que se albergou na minha interrogação inicial.
Assim, deverei começar por esclarecer o que entendo ser “ateu”, estabelecer o âmbito das propriedades que limitam o conceito, analisar e avaliar a bondade de cada uma das propriedades e, finalmente, apresentar uma proposta decorrente das conclusões obtidas.
O ateísmo caracteriza-se pela oposição racional ao teísmo através da postulação de argumentos que negam a existência de deus, rejeitam a a superioridade ética da vida religiosa e mostram alguns efeitos perniciosos para o bem estar da humanidade de comportamentos e atitudes assumidas ao longo da História pelas comunidades confessionais e suas hierarquias. Estou a assumir o termo “teísmo” em termos muitos gerais que vão desde o panteísmo aos monoteísmos: quer se trate de acreditar num deus único, no carácter divino do universo ou na divinização de múltiplas forças naturais ou sociais, é a natureza do divino, e não as suas figurações, que importa analisar. Por outro lado, também, não farei distinções entre o teísmo e o deísmo, pelas mesmas razões. Aceitar a existência de deus tem para o ateu um significado que é independente dos seus atributos. O ateu acha que deus não existe sob qualquer forma.
E o agnosticismo? Não será o agnosticismo uma forma mestiça, híbrida de ateísmo e teísmo? Uma pessoa que se diz agnóstica confessa, em termos práticos, a sua incapacidade para tomar parte da questão. Se calhar, deus não existe; se calhar, deus existe. Para o agnóstico, não é possível tomar uma decisão face a um problema dessa magnitude; a questão está fora do alcance da capacidade de conhecimento (gnose) humano; por conseguinte, cada um é livre de assumir as atitudes e professar as crenças que bem entender.
Face a uma tal posição, compreende-se que o agnóstico seja arrumado pelos teístas na prateleira em que estes colocam os ateus; inversamente, um ateu tenderá a ver no agnóstico um teísta indeciso.
Resumindo, o ateísmo é uma posição que se autopercepciona como distinta e contrária ao teísmo, ao deísmo e agnosticismo.
Em termos positivos, o que é que caracteriza o ateísmo?
O aspecto decisivo, que estabelece o corte com as restantes posições deste universo, é a crença na não existência de deus fundamentada racionalmente. Não abordarei os argumentos clássicos desta posição que estão solidamente estabelecidos e bem apresentados e difundidos. A exposição de Russell na dissertação referida mantém nos dias de hoje plena actualidade. Mas os mesmos argumentos têm sido reformulados de uma forma mais consistente e melhor apoiados no conhecimento científico actual o qual não cessa de dar contributos para reforçar a posição ateísta. A propósito recomendo a leitura das obras do sociobiólogo Richard Dawkins ou do filósofo Daniel Dennett.
O segundo aspecto do ateísmo é identificar as motivações e os processos biológicos e culturais que ao longo da evolução da espécie conduziram à consolidação das ideias de deus e da religião e analisar de que maneira e em que grau as religiões positivas contribuíram para confortar ou aviltar o ser humano. O pendor constante na história para este último efeito constitui um novo tipo de argumentos a favor do abandono da ideia de deus.
O terceiro aspecto é de que nada serve negar a existência de deus e a ineficácia das religiões para a resolução dos problemas humanos se isso não conduzir à procura de uma explicação racional e coerente sobre o homem e o universo. O ateísmo introduz aqui uma visão libertadora sobre o medo e sobre todas as forças exploradoras do homem, assume uma crença positiva a respeito da capacidade da inteligência para resolver ou minorar os problemas humanos e defende a visão naturalista do mundo baseada no conhecimento científico.
Porque não sou ateu? Porque não sou ateu se nego a existência de deus, se considero as religiões uma das principais causas ou desculpas do obscurantismo e das misérias humanas, se tenho uma orientação positiva para a humanidade e a natureza?
Considero o pensamento humano - em que incluo a consciência, os processos cognitivos, o mundo simbólico das linguagens, das ideias e dos discursos, os sentimentos, as memórias internas e as externalizadas em artefactos, et cetera – como um conjunto de objectos biológicos com vida própria e constituído em sistema. Como sistema vivo é um sistema evolutivo no sentido em que é suficientemente diferenciado para prover adaptações às mudanças ambientais que põem em risco a sua sobrevivência.
O pensamento humano é um sistema complexo evolutivo paralelo e autónomo face ao sistema vivo natural.
Embora tenha sido inicialmente criado pelas faculdades biológicas da espécie (ou co-desenvolvido com estas) para proteger e ampliar a sua capacidade de sobrevivência, ao adquirir autonomia e ao expandir-se, passou a ter por lógica interna a auto sobrevivência a todo o custo mesmo que esta represente a liquidação da espécie humana ou do planeta.
Símbolos como deus, o estatuto ou o dinheiro, ou ideocomplexos, como a religião, a raça ou o mercado, são tão arcaicos e tão infra-estruturantes de todo o sistema simbólico que este arrisca-se a ruir se algum deles for mexido. É nessa lógica guerreira que assenta o fanatismo, o proselitismo e o espírito evangélico de todas as confissões, ideologias, seitas, clubes. E também a sua magia e o seu maravilhoso.
Contudo, o homem está ameaçado como está o planeta pelas mesmas razões. Aquilo a que atribuímos a criação do mundo e da espécie está a contribuir de uma forma acelerada para a destruição da Terra e do Homem. Neste caso, torna-se vital combater deus activamente, não chega negar a sua existência. A constatação do facto de deus não existir em nada altera a condição humana. Mas a sobrevivência da sua ideia é nefasta pelo que tem que ser combatida.
Mas, dir-me-ão: esta não será uma posição intolerante, anti-democrática? Verificando-se que há uma esmagadora maioria de pessoas crentes, tomar uma atitude francamente hostil para com a religião não será desrespeitar os sentimentos das pessoas, atentar contra a liberdade de pensamento e de culto, rejeitar a um ror de gente um bálsamo e um lenitivo para as suas grandes dores e tristezas?
Contra isso não posso argumentar que foi isso mesmo que os cristãos de todas as versões fizeram a maior parte do tempo ao longo de dois milénios, que é isso que o terrorismo islâmico faz, que todas as religiões fazem. Não se trata de fazer pagar, de forma jacobina, com igual moeda.
O ideário nazi foi partilhado por uma maioria de alemães e teve apoiantes em todo o chamado mundo livre. Que apoiaram os esforço de guerra, propagandearam ideias racistas e xenófobas, que fecharam os olhos aos campos de extermínio. Os alemães que se opuseram não se sentiram eticamente culpados por “ferir os sentimentos da maioria”, lutaram para exterminar o nazismo e não se sentiram “antidemocráticos”. A atitude que devemos ter perante o fascismo, a xenofobia, o racismo, o latrocínio, o genocídio e o geocídio é de combate.
Ser afascista, isto é negar as proposições do fascismo, e não o combater não é nada. Do mesmo modo não é nada ser ateu
Se ser antifascista é combater a loucura do fascismo e educar o cidadão para a vida democrática, ser antiteísta é combater a loucura mística e preparar a humanidade para o luto de deus.