Por oposição ao Lugar, o Globo não tem a possibilidade de representação.
O lugar pode ser representado na medida em que através dele se tornam sempre e de novo presentes o meu corpo e as coisas que preenchem o lugar. Dito assim, este é o lugar do eu presente, aqui-e-agora, mas há os lugares de onde vim e os lugares para onde tenciono ir. Eles estão presentes na medida em que estão presentes na memória.
A representação de um lugar não depende da sua extensão, mas a sua extensão depende da minha prontidão para o representar. Neste momento, estou aqui à secretária, confinado a um pequeno rectângulo de madeira e face a um conjunto de objectos a que chamo de computador e seus periféricos. Todavia, a vista e o ouvido prolongam o espaço do lugar até ao limite em que vislumbro as paredes e as janelas, o chão e o tecto. O cheiro intenso a queimado do pão que deixei na torradeira permite-me ir ainda ao de lá destas barreiras físicas e integrar o espaço invisível da cozinha. Ir é uma maneira de dizer: o corpo que desce as escadas em direcção à cozinha é um corpo descarnado, comandado à distância pelo cérebro, que vai perdendo visibilidade e se ausenta à medida que se afasta. O meu corpo real continua sentado a ocupar o centro geométrico do lugar, inerte e pesado, às excepção das mãos que picoteiam incessantemente o teclado e dos olhos que percorrem o ecrã em movimentos certeiros de escrutínio.
A representação do lugar, como não depende da sua extensão, não tem limites definidos, é elástica na periferia. O encolher ou o alargar depende da minha preocupação. Estar ocupado significa estar aqui com as coisas no centro do lugar. E se o lugar se expande, e até onde se expande, isso representa o alcance da minha preocupação. Agora, neste exacto momento, o meu lugar abarca a horta nova, aquele pequeno rectângulo situado a norte entre os ciprestes e a pista de ciclismo do Daniel. Tenho que continuar, o mais cedo possível, a vedação a arame para impedir a invasão pelos coelhos bravos. Amanhã ou depois, estarei noutro lugar, conto que seja em Lisboa. Lisboa não está confinada aos seus limites concelhios. Estes não delimitam um lugar, apenas definem uma convenção geográfica. Lisboa irá começar na auto-estrada, algures onde uma atmosfera de poluição opressora me fará entontecer, abrasar os brônquios e embaçar os olhos. E terá continuidade através da segunda circular, IC19 e IC21 até para lá da Várzea de Sintra em direcção ao Magoito onde me encontrarei com a minha mãe para o nosso almoço em comum da semana.
Este lugar grande, esta grande elipse com os dois focos em Santarém e em Lisboa, é o meu lugar habitual, o lugar onde espalho regularmente a minha existência segundo o meu modo de vida. O meu lugar é o que eu quero que seja, sem extensão predefinida, sem centro preferido. Noutras alturas da minha vida, vivi noutros lugares, viajei por outros lugares. Saí da Europa para estar em África ou ir à América. África e América são continentes, isto é, grandes lugares, cercados por outros lugares que são os céus e os mares, que contêm lugares, que englobam outros lugares num decrescendo harmónico até aos últimos lugares que é, cada um, onde se encontra, ou se ausenta, uma pessoa.
Se podemos descobrir novos lugares, por uma espécie de zoom out, rasgando e alargando os horizontes e, conversamente, miniaturizar microscopicamente um lugar, por uma espécie de zoom in, porque não alargar, mesmo que conceptualmente, os limites do lugar para um horizonte praticamente infinito e conceber o global como um lugar infinitamente grande? Exactamente pela razão que isso continuaria a ser um lugar, centrado no meu olhar pessoal na presença do meu corpo de si a si mesmo. E haveria certamente outros lugares globais centrados na vivência de outros. Pobres e descaracterizados, mas extensos, partilhando em comum a existência de uma barreira de contornos nebulosos, separando o todo do nada, o aquém do além.
A este lugar “globalizado” chamou a cristandade medieval o “mundo”. Para o cristão medieval, o mundo é o ambiente onde a alma cumpre a sua passagem pela terra, incarnada num corpo material e corruptível, até regressar ao sítio de onde é originária, o Além.
O cristianismo primitivo foi uma religião de cidades. A cidade cristã é, em primeiro lugar, uma comunidade de pessoas, a igreja, e não uma cidade de pedra. (O termo igreja tem raiz no grego εκκλησία, a assembleia dos cidadãos, e só designou os edifícios religiosos muitos séculos mais tarde). A cidade cristã primitiva era um lugar fundado sobre os corpos dos que praticavam a fé seguindo a tradição, fundamentada nos evangelhos, segundo a qual o fundador a havia edificado sobre o corpo do seu discípulo Simão, a quem chamou Pedra (”et adduxit eum ad Iesum intuitus autem eum Iesus dixit tu es Simon filius Iohanna tu vocaberis Cephas quod interpretatur Petrus” [João, I, 42]). O corpo foi sem dúvida a pedra alicerce sobre o qual os seguidores de Cristo edificariam a sua igreja, “e as portas do inferno não prevalecerão contra ela” [Mateus, XVI,18].
Como os ratos de esgoto, os primeiros cristãos prosperaram no mundo subterrâneo das catacumbas, onde se encontravam e praticavam o culto. Viviam entre dois aléns, um além interior, a cidade de deus, e um alem exterior, a cidade dos homens, o mundo. As portas do inferno estavam realmente a dois passos. Os seus corpos eram o templo onde habitava o espírito do eterno e não podiam ser profanados. Contra a profanação, a apostasia ou as tentações do inimigo o cristão deveria dar testemunho da sua fé (mártir, em grego μάρτυς, significa testemunha) através do sofrimento sacrifício e, se necessário, pela morte do corpo.
A partir do século IV o cristianismo faz um giro de 180 graus. Em 301, torna-se igreja de estado na Arménia. Em 313, cessam as perseguições religiosas em todo o império graças ao Edito de Milão, promulgado por Constantino. Em 325, os bispos reunidos no Concílio de Niceia dissiparam as controvérsias teológicas criando o unanimismo da fé em torno do símbolo dos apóstolos, o credo cristão. Na segunda metade do século, sob o domínio de Teodosiano, os cristãos fizeram o assalto final ao império, destruindo ou confiscando os templos pagãos, acusando, demitindo e perseguindo até à morte os ministros dos velhos cultos imperiais e combatendo ferozmente tudo o que lhes pareceu pagão ou herético. Em 381, o Concílio de Constantinopla decretou o dogma da Tridade consagrando a fusão do messianismo judeocristão com o essencial do mitraísmo, a religião pagã indo-europeia dominante no seio dos exércitos que defendiam o Império nas suas fronteiras. Cristianização do império ou romanização do cristianismo? Foram os cristãos que minaram o império para sobreviver às perseguições, ou foi o império que se apropriou do cristianismo para sobreviver à pressão dos bárbaros? Esta é a única questão cuja resposta nos poderá ajudar a compreender a natureza real da auto-intitulada Igreja Católica Romana.
Sendo a história escrita pelos cristãos, não admira que nos tenha sido passada uma imagem de um império cujos alicerces vão ruindo sobre o sangue mártir dos cristãos, como a cidade de Jericó, a Tróia semita, sucumbiu ao som das trezentas trombetas dos sitiantes. Prefiro a versão oposta. Face à eminente invasão dos bárbaros urgia tomar duas decisões: transferir a capital do império para oriente e subordenar todas as instituições políticas, jurídicas e administrativas a uma ideologia monista, autoritária, centralizadora, prosélita e de ambição universalista. A invasão bárbara consistiu mais numa pressão populacional, começando nas fronteiras e acabando na Urbe, do que em investidas guerreiras. Como hoje, as hordas tribais sul-americanas, africanas e orientais impulsionadas pela fome e atraídas pela riqueza, real ou imaginada, da Comunidade Europeia. Assim, Roma acolheu os bárbaros convertendo-os de seguida ao cristianismo. O mundo transformou-se, provisoriamente, na cidade de deus, a igreja militante. O mundo, desde aí e até meados dos século passado com a descolonização, não deixou de ser um imenso campo de batalha, na purga do paganismo e das heresias, nas cruzadas contra os infiéis e no alargamento da fé e do império. Por isso, igreja romana – porque é o império romano que sobrevive e não as crenças proto-cristãs; por isso, igreja católica – devido à pulsão de universalismo [católico, em grego καθολικός, significa universal], de globalização.
O império, nos dias de hoje, sente-se ameaçado pela nova invasão dos bárbaros: as economias emergentes, o terrorismo global e o espectro da fome, pandemias e calamidades naturais. Novamente na história dos homens a mesma solução de sobrevivência: a adopção de uma religião militante e globalizadora.
E essa nova religião globalizadora é o liberalismo. Como o cristianismo, que combateu o “mundano” por separar deus e a alma, o liberalismo combate o “estado” e a “política”, a mão visível do intervencionismo e do proteccionismo que obstrui o equilíbrio do mercado, separando a oferta e a procura. Como o cristianismo criou uma rede europeia, e depois mundial, de paróquias e de mosteiros, com as suas escolas, bibliotecas e catedrais, para se expandir e controlar, o liberalismo usou os media e as telecomunicações para globalizar (conectividade absoluta).
A oposição lugar-globo não é uma questão de escala. O globo não é o mais extenso e o mais abstracto dos lugares.
Sendo o corpo a sede de todos os lugares, os cristãos (numa tradição que vem de Platão até Agostinho de Hipona através dos neoplatónicos) reinventaram a alma para sediar o além. Os novos mentores da suprema religião económica/ecuménica inventaram o ser virtual –pura essência descorporalizada sede de puras decisões instantâneas, o sujeito económico actor do mercado, o sujeito lúdico viciado na internet e no telemóvel e de toda a parafernália de gadgetsque prometem o céu instantâneo e pronto a gozar. O global não é representável porque o corpo é-lhe ausente.
Que haja fome no mundo? Sempre houve. Um pequeno inconveniente para castigar o corpo e atingir o reino dos céus. Graças à economia de mercado, não vivemos já num mundo de abundância?
A monotonia de ser único. A criação é um momento de desenfado – deus, enfadado da sua interioridade, exterioriza-se.E deus viu que assim era bom. Porque naquele momento sucedeu o que é impensável acontecer a um deus, a experiência da finitude.
No último dia da criação, deus contemplou e estabeleceu e santificou um período de descanso.
Deixou-se adormecer, experimentando um novo estado de tranquilidade, e murmurou: “eu sou o que sou”.
Escrevi atrás: “ O que de específico se vislumbra no caso mental português é o facto de não termos uma elite, um escol, uma classe elevada de condutores. Temos, a ocupar o seu lugar, os “grandes”: a desaristocracia do desenrascanço bacoco dos patos bravos de todas as áreas e actividades económicas, [...]”.
Assistimos, nestes dias que passam, tristes e sem fim à vista, ao blockout dos camionistas. Dá-se a ver um espectáculo aterrador, de telejornalismo de catástrofe, um cenário de ante-estreia de guerra civil. Um punhado de salteadores de estrada armaram a cilada a um Estado fraco, incompetente e desautorizado e preparam-se para se apossar, pela força bruta e acéfala de que dispõem, de parte das escassas economias do Orçamento, que é dinheiro nosso, do povo que trabalha, que se cansa, que desconta e que espera, no infortúnio da doença, da incapacidade, do desemprego ou da velhice e viuvez, que a Nação lhe mitigue o penar da sua condição sofredora.
As donas de casa de Santiago saíram com as suas panelas à rua e o poder democrático caiu no Chile banhado em sangue. Nas estradas de Portugal, os camionistas desafiam o povo português e os poderes, bons ou maus, mas que foram por ele constituídos e legitimados.
As estações de serviço estão a secar por todo o lado, as prateleiras das superfícies comerciais esvaziam-se, os produtores deitam à lixeira os produtos do seu trabalho, empresas não recebem os suprimentos de que carecem para produzir, os transportes públicos encostam. Empresas irão certamente fechar acrescentando novos recrutas ao exército dos desempregados. As veias e as artérias por onde flui a riqueza nacional decidiram entupir para melhor asfixiar o cérebro que governa e paralisar os braços e mãos que trabalham. Estupidez não lhes falta e sobra-lhes a ganância.
O poder vai cair na rua, melhor vai cair na estrada. O povo sai vencido, dividido, confuso. A culpa não é sempre do Governo? Se o preço do barril sobe, a culpa é do Governo; se as multinacionais deslocalizam as suas empresas, a culpa é do Governo; se chove ou faz seca, a culpa é do Governo. E que faz o Governo? Defende o povo das emboscadas dos bandoleiros de estrada? Não! Concilia, dialoga, pactua.
E o povo, a arraia miúda, que vê e assiste, o que faz, o que pensa? Que somos os maiores: derrotámos a República Checa por 3-1! Toca a ir para os santos populares a enfardar sardinha assada, escorropichar tintol e cantar o fado.
Depois, se ganharmos o Europeu, iremos todos a Fátima de joelhos.
Já comprei os paus para as portas da horta: agora é só fazê-las. Tenho que desenhar todo o processo antes que dê burrada. Essa de que os portugueses são bons a desenrascar é uma grande treta. Eu cá desenrasco-me bem com um bom plano.
Isto na estufa não vai já com mangueiradas. Com este calor e as minhas ausências vão-se-me as plantinhas todas. Fenecem, coitaditas. Entretanto, inventei um sistema através da reutilização de RSUs que me minimiza o problema e me atesta como amigo do ambiente. Que isto de amizades só me quero com boas companhias.
Os cravinhos amarelos já têm as orelhas verdes de fora, todas alinhadinhas em fileiras, parecem um exército de soldadinhos de chumbo. As margaridas brancas estão a pegar. Ao salgueiro chorão (salix babylonica), que tinha plantado ao lado de um difusor, caíram-lhe as folhas todas e agora estão-lhe a despontar folhinhas novas tenrinhas de verde.
Ainda não deu o badagaio à traquitana da roçadeira a motor. Lá lhe descobri mais um parafuso de afinição e a coisa endireitou-se um bocado. Deu para limpar a norte da horta. Apliquei o produto no "dedão" a ver se elimino a invasão da grama. Com este calor talvez o problema esteja resolvido numa semana.
Limpeza geral das roseiras com o corte das rosas mortas e desbaste dos ramos inúteis para clarear o roseiral que se pôs denso e a abafar outras espécies.
Limpeza geral dos caminhos do bosque atapetados de folhas secas de carvalho e de sobreiro. Amontoados e triturados vão para as zonas novas da horta para correcção orgânica do solo.
Mudança da composteira para RSUs orgânicos domésticos. Eram tantas as minhocas que dava gosto vê-las a acotovelarem-se umas às outras. Pareciam um rebanho de ovelhas frenéticas.
Checklist para os próximos dias:
Fazer e montar as portas que a horta parece a colónia de férias dos coelhinhos. Tenho-os visto com binóculos da janela a norte do mezaninho: gorduchos e compridões, devem ter um sabor ligeiramente adocicado a alface que, em vez de me crescer, está a decrescer a olhos vistos. Há dias, a Ratita preparou-lhes uma emboscada: estava um, nédio e lustroso, a dar à bigodaça em cima do monte de composto, e ela em posição de atalaia, corpo tenso e controlado, um ror de tempo, só deus sabe! Apoiei os cotovelos no parapeito da janela que os binóculos são pesados e qualquer oscilar turva a visão. Na gata não se via mas sentia-se o coração a bombar. E o coelho na maior. Na gata tudo músculo comprimido, pronto a disparar. A certa altura, o coelho sentiu ou pressentiu qualquer coisa no ar, talvez o silêncio que se faz na natureza nestas alturas, e zás! fez-se à correria. O pulo da gata foi imediato e certeiro, só que em vez de aterrar sobre o coelho foi parar ao sítio onde este estivera. Foi um gozo ver a correria dos dois. A gata pareceu-me bem veloz mas não atinou com o movimento em ziguezague do lanudo. Desistiu. Que isto de felinos é sim ou sopas, que não ficam a discutir se a culpa é do treinador ou do relvado.
Verificação e correcção geral do sistema de rega: verificar os temporizadores, a pressão e eventuais fugas e testar a limpeza dos gotejadores e difusores e regular o seu alcance.
Continuar as limpezas gerais do terreno, dos caminhos, do jardim e da horta.
Escrevi no último poste “…blockout…”. Até hoje ninguém veio a terreiro a reclamar o erro. Pois bem, quem sou eu para se importar com isso. Confesso-vos que não se trata de um erro na vigência, quer do actual passado, quer do actual futuro acordo ortográfico, nem tampouco de um lapsus calami. Foi antes, acreditem, um jogo de espírito com alguma matreirice a soar a rasteira.
Está em blockout subjacente a fusão dos termos “bloqueio” e “lockout”. A aplicação de cada um ao caso em apreço não careceu de uma explicação detalhada pois apreendia-se por si directamente. Hoje, só o afastamento no tempo das ocorrências a que o postal se referia justifica uma explicação breve pois, como se sabe, a memória do povo, e os interesses da comunicação social, só dão pela notícia, como o apreciador de peixe, enquanto está fresca.
Foi de facto um bloqueio em múltiplos sentidos: bloqueio de estradas, impedindo ou dificultando o trânsito rodoviário; bloqueio do fluxo de mercadorias, impedindo a sua chegada aos locais de consumo; bloqueio ao Estado, impedindo o exercício da sua função regularizadora da vida nacional. Foi também um lockout enquanto paralisação da actividade ditada pelas entidades patronais, decisão essa que, uma vez tomada, impedia o acesso ao trabalho dos seus empregados.
O que ganhámos na fusão de dois num único termo? Economia de palavras, não me parece. Um acréscimo de significação? Sim. É sobre essa mais valia a que se refere o postal de hoje.
O blockout é um jogo da família do Tetris em que as peças bem como o espaço de jogo são tridimensionais. A tarefa consiste em rodar e mover cada peça, à medida em que vai aparecendo, de modo a acamá-la sem deixar espaços em branco. Cada linha completamente preenchida pontua e desaparece, fazendo baixar a pilha de peças. Caso contrário, a pilha cresce até ao topo e o jogo termina.
Foi o que me sugeriu o lockout dos camionistas: sempre que um camião parava, paravam os pontuadores da criação e da redistribuição da riqueza nacional. E não há més nem memés: os números têm a crueldade das coisas verdadeiras!
Quem são os camionistas? A que grupo pertencem, aos grandes ou aos pequenos? Qual é a sua posição mental: mania ou depressão? São um grupo isolado ou partilham características com um grupo maior?
Comecemos pelo fim. Em Portugal, há uma classe social de estatuto médio e com características híbridas. São os pequenos e médios proprietários/empresários/patrões. Proprietários agrícolas, pescadores, comerciantes locais/tradicionais, camionistas, construção civil, pequenas e médias indústrias.
Pelo trabalho esforçado amealham riqueza, estatuto social e ostentação. São donos, forma demótica de ser proprietário; e são patrões, forma empresarial de ser paternalista.
Pelos baixos níveis de formação e por extracção social, são povo: ética do trabalho, linguagem rudimentar, modos e gostos grosseiros, baixo empreendedorismo, pouca inovação e renovação tecnológica.
Pelo poder, capacidade económica e jactância, são grandes. Pelos modos, saber e valores, são arraia miúda. Pelo lado da grandeza, são politicamente conservadores; pelo da miudeza, radicais e anarquistas. Não admira, portanto, que sejam requestados e arregimentados, tanto pelos partidos políticos de direita, como de esquerda.
São a base do poder popular desde a idade média nacional (revolução de 1383) e podem encontrar-se nos dois lados das trincheiras das lutas políticas (restauração, miguelistas e liberais, revoluções e contra-revoluções na Republica e no 1926, movimentos radicais à esquerda e à direita no PREC e no após 25 de Abril).
Estão contra as grandes empresas, nacionais ou estrangeiras, que os abafam. Pequenos comerciantes contra as grandes superfícies, pequenos camionistas contra grandes empresas de camionagem, pescadores nacionais contra empresas espanholas, agricultores contra as políticas agrícolas comuns. Pequenos livreiros, Leya e crise na Feira do Livro de Lisboa.
Estão contra os assalariados com acusam de preguiça, consumismo, falta de espírito de poupança. Habituados a trabalhar (“cedo erguer”) e a aferrolhar. Frugalidade. Ostentam superioridade moral e valores a condizer.
Em relação ao Estado é a classe mais subsídio-dependente. O Estado funciona como uma grande companhia de seguros: tem que protegê-los da Comunidade Europeia, do estrangeiro, das calamidades naturais, das crises económicas ou financeiras, das reivindicações dos assalariados.
É uma dependência sem contrapartidas numa economia subterrânea onde é típica, sobretudo na construção civil e nas pequenas empreitadas domésticas, a fuga aos impostos facilitando o cliente com a não emissão de facturas.
Comove-me saber que pararam a paragem para ver o Europeu. Comove-me saber que sofreram com a derrota.